A temporada de milagres em família

O misterioso pacote do papai Meu pai parecia um bolo inglês. Certa vez, ele até me mandou um. Que nunca chegou. por David Rompf, adaptado do The New York

Redação | 1 de Dezembro de 2020 às 20:21

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O misterioso pacote do papai

Meu pai parecia um bolo inglês. Certa vez, ele até me mandou um. Que nunca chegou.

por David Rompf, adaptado do The New York Times

Alguns anos atrás, meu pai decidiu encomendar no Natal um bolo inglês que me seria enviado pelo correio. Embora eu tivesse um bom emprego e um apartamento em Manhattan, ele temia que meus armários e a geladeira estivessem vazios.

Eu acabara de me mudar, vindo da Califórnia, onde meus pais moravam 50 anos na casa onde cresci. Ele queria que eu recebesse uma marca específica de bolo inglês. Feito no Texas, era famoso entre os amantes desse tipo de bolo – ou, pelo menos, entre as pessoas que davam bolo inglês a quem supostamente gostava deles.

“Este me faz lembrar os bolos da minha mãe”, me disse ele num telefonema. “O dela era muito úmido, cheio de passas.” Mais tarde, imaginei que a versão da minha avó, que nunca tive a oportunidade de experimentar, era provavelmente um bolo da Grande Depressão, feito sem leite, açúcar, manteiga nem ovos, itens escassos quando meu pai era criança.

Nascido em 1932, papai cresceu durante a Grande Depressão na Península Superior do Michigan. Na maioria dos Natais, recebia dois presentes: um par de meias feitas à mão e um saquinho de laranjas. “Minha mãe tricotava as meias”, dizia ele. “E aquelas laranjas eram uma delícia.”

Para ele, encomendar o bolo inglês foi um jeito de cuidar de mim a distância, numa época que, na cabeça dele, poderia se tornar economicamente perigosa a qualquer momento. Apesar de minha meia-idade, eu ainda era seu filho.

“Deve chegar na primeira semana de dezembro”, avisou ele. “Quando receber, me diga o que achou.” Eu passaria o Natal na Califórnia, como faço todo ano, e aguardava seu presente para provar os sabores que o transportavam para a infância.

A primeira semana de dezembro se passou sem sinal do bolo inglês. Atrasado pelo correio no fim do ano, supus, ou pelo excesso de pedidos. Eu sabia que haveria muito para comer na Califórnia.

Além dos biscoitos, dos quadrados de chocolate e de outras guloseimas da minha mãe, meu pai sempre dava a mim e à minha irmã um saco grande de alimentos sortidos que ele chamava de “Saco de Comida”. Ele só os tirava de algum lugar secreto depois que todos os outros presentes tinham sido abertos.

Certo ano, registrei num caderno o conteúdo do meu Saco de Comida. Acho que eu queria ter um registro para o dia em que talvez não ganhasse um no Natal.

Naquele ano, meu saco continha uma lata de nozes e castanhas sortidas de luxo, uma caixa de biscoitos de trigo integral, uma barra de chocolate belga, uma linguiça de peru com pecã, um saco de 250 gramas de pistaches vermelhos, um pouco de chá inglês e muitos outros itens, inclusive um estojo em forma de rena cheio de balinhas de goma que liberava as balas pelo traseiro.

Eu tinha 44 anos quando meu pai me deu esse Saco de Comida, e ele, 72.Os sacos tinham um parentesco esquisito mas inegável com o bolo inglês, por conter um pouco disso e daquilo, tudo reunido com um resultado curioso. Vinham tão cheios que não era raro eu pôr a maior parte da comida numa caixa e mandá-la para casa pelo correio.

Certo ano, juntei alguns itens mais saudáveis – sardinhas, biscoitos de centeio, damascos secos – e, no caminho do aeroporto, fiz uma entrega especial no centro de doações de uma igreja local.

“O bolo inglês é um conceito polarizador, uma palavra-gatilho”

As pessoas o amam ou odeiam e gostam de debater se realmente é um bolo. De certo modo, o caráter do meu pai lembrava um bolo inglês: excêntrico e meio maluquinho, com uma base doce. Quando éramos crianças e íamos ao shopping, ele gostava de se borrifar com os perfumes femininos – todos eles. Isso foi antes que os balcões de colônias masculinas se tornassem comuns. Quando se tornaram, ele se transformava num buquê pansexual de fragrâncias exóticas.

Na volta para casa, minha mãe dizia: “Você está fedendo! O que pôs desta vez?” Quando trabalhava como açougueiro de supermercado, ele era chamado pelos colegas de Crazy Charlie e ficou famoso pelas pegadinhas que aplicava, como fingir que trancara alguém na câmara fria da carne. Mas também dava dicas aos fregueses que não sabiam assar cordeiro nem fazer recheio.

Quando voltava do turno da noite, ele deixava chocolates sob nosso travesseiro, achando que poderíamos acordar com fome. Meu pai acreditava que todo mundo estava sempre com fome e precisava comer. Quando o visitávamos no hospital durante três meses de internação – houve uma infecção grave depois da cirurgia cardíaca –, ele perguntava se tínhamos comido e nunca deixava de nos lembrar que o refeitório logo fecharia. “Pelo menos, tome um café”, pedia. “Não se preocupe comigo.”

Na cabeça dele, o bolo inglês era o presente de Natal perfeito. A mistura culinária de frutas cristalizadas sugeria uma extravagância que contradizia sua praticidade: o bolo inglês enche a barriga e dura muito tempo. Em 2017, um bolo inglês supostamente levado pela expedição de Robert Scott à Antártida, mais de 100 anos antes, foi encontrado em “excelente estado”.

Na véspera do meu voo para a Califórnia, o bolo inglês ainda não tinha chegado. Quando ligou para me desejar boa viagem, meu pai perguntou:

– Recebeu?

– Ainda não – respondi.

– Com as festas, o correio deve estar atrasado.

– Talvez chegue hoje. – Ele ficou muito preocupado com aquele bolo inglês perdido. Quando cheguei à casa dos meus pais, ele perguntou novamente:

– Recebeu o bolo inglês?

– Não, mas tenho certeza de que estará lá quando eu voltar para casa. Assim que a palavra saiu de meus lábios, percebi que casa, para eles, era um tipo de gatilho. Como assim? Ali não era a casa? Não era minha casa agora, com meus pais me recebendo, me perguntando se eu estava com fome depois do longo voo?

Na sala de estar, uma árvore de Natal se erguia acima de pilhas de presentes com papel purpurinado e, no quarto de hóspedes, eu sabia que meu pai escondera nossos Sacos de Comida embaixo de toalhas grandes. Ele tinha esperança de que o bolo inglês chegasse na véspera do Ano–novo, quando eu estaria de volta ao centro de Manhattan, com a humanidade bramindo na Times Square. Janeiro, fevereiro e março vieram e se foram sem bolo inglês.

Embora meu pai continuasse a perguntar, nunca pensei em mentir e lhe dizer que sim, o bolo inglês finalmente chegara e era delicioso. Em vez disso, eu dizia:

– Aquele bolo está na órbita da Terra, e mais cedo ou mais tarde vai pousar.

– Essa é boa! – exclamava ele. Seu senso de humor nunca vacilou, e, com o passar do tempo, ele citava a viagem perpétua de seu bolo inglês.

– Onde será que ele está agora? – perguntava.

– Fez um desvio até Plutão. Ele gostou dessa também.

– Quer que eu encomende outro, caso esse não chegue?

– Não tem problema, pai – respondi. – Espero esse chegar. Ficará ainda mais gostoso depois de viajar pelo cosmo. No início de dezembro passado, quase um ano depois de meu pai morrer de insuficiência cardíaca, o porteiro de meu prédio me chamou pelo interfone. “Chegou um pacote”, anunciou ele. Desci para pegar. A caixa marrom tinha um rótulo do FedEx com remetente do Texas.

Comemoração de Homens

O tio Ed era um sujeito durão, de poucas palavras. Mas, quando me levou numa viagem na véspera de Natal, ele me deu o tipo de doce lembrança que dura a vida inteira.

Por Rick Bragg, de Southern Living

Esperei tempo demais para agradecer ao tio Ed por aquela véspera de Natal, mas acho que ele e eu nunca fomos o tipo de homem que escreve (ou lê) muitos bilhetes. Mesmo perto do Natal, quando é mais fácil tolerar um pouco de tolice e frivolidade, é improvável que homens de uma certa época, classe e lugar tenham algo a ver com cartões de agradecimento.

Seria o mesmo que sair cantando com um suéter que pisca. Homens do sul como nós tendem a manter a festa de nosso jeito e deixar os outros do jeito deles. Ainda assim, alguns natais são melhores do que outros. Alguns se acendem e se apagam da lembrança, como um curto-circuito num pisca–pisca velho.

Para mim, 1969 é que sempre vai piscar em minha mente nessa época do ano. Foi quando li Um conto de Natal, de Charles Dickens, pela primeira vez e o vi tomar vida, por assim dizer, nas montanhas cobertas de neblina do nordeste do Alabama. Sempre amei o Natal. Quando menino, adorava ir ao supermercado, com perus congelados e presuntos defumados empilhados como balas de canhão.

Aqui havia e há um tipo lindo de robustez que espelha as pessoas. As árvores são reais e vêm dessas montanhas, em geral pinheiros resistentes e cedros. Conseguíamos o azevinho do jeito antigo, arrancando-o das árvores com a espingarda.

Quase todos os ornamentos eram feitos à mão, em geral com papel-alumínio já usado duas vezes. A estrela que coroava a árvore em dezembro provavelmente era o resto do que embrulhou um sanduíche de tomate no verão anterior.

Esse era meu Natal. Simples, nada extravagante, mas com afeto. A mulher do tio Ed, minha tia Juanita, enchia a casa com o cheiro de seus biscoitos de manteiga de amendoim. Mamãe assava tortas de pecã tão densas que ninguém pedia uma fatia, mas uma placa.

Os pratos de papel se curvavam com o peso. Meu tio Joe fazia uma farofa de forno de pão de milho que dava para comer de garfo, como um bolo. Mas até esse Natal robusto era delicado demais para o tio Ed, o homem mais trabalhador que já conheci. Ele achava que havia algo errado em parar de trabalhar no meio da semana, em dias que podia passar usando uma motosserra ou uma pá.

E a véspera de Natal era um dia útil como outro qualquer. Naquele ano, com 10 anos, eu perambulava pela casa e pelo quintal, espiando os presentes embrulhados sob a árvore, tentando, com meu olhar de raios X, ver através do papel um presente muito parecido com um boneco Comandos em Ação, quando ele me perguntou se queria ir a Gadsden com ele olhar um caminhão-basculante usado.

Em qualquer outro momento, eu derrubaria os móveis correndo para chegar à picape. Garotos da roça nunca perdem a oportunidade de ir à cidade, de ir a qualquer lugar. Mas era véspera de Natal, horas antes de a família se reunir para o banquete. Naquele ano, havia um veado assado do tamanho de um búfalo… e troca de presentes. Alguém talvez trouxesse o violão ou a gaita e até tivesse coragem de cantar. Havia também biscoitos e, quem sabe, chocolate para furtar, tias para irritar e reprises em preto e branco para assistir na TV. 

“Num milagre de Natal, tio Ed disse que tínhamos algo importante para fazer”

Então, às cinco da tarde, o homem do tempo nos mostraria em seu radar onde estava Papai Noel em relação ao condado de Calhoun, no Alabama. Acreditávamos nele. Eu perderia tudo se fosse com tio Ed, talvez o Natal todo. Quando começava um serviço, mesmo que fosse só procurar um caminhão, ele não parava até terminar. Sem dúvida poderia esperar.

– Quer ir ou não? – perguntou ele.

Não tive coragem.

– Acho que sim – respondi.

Era um daqueles dias de inverno no Sul, quase negro à tarde, tão densa era a neblina. As nuvens baixas eram de um cinza frio. Parecia que o aquecedor da velha camionete GMC nunca esquentava, e foi só no meio do caminho até Gadsden que meus dedos dos pés começaram a descongelar. Partes da cidade industrial junto ao Rio Coosa estariam muito iluminadas, e consumidores encheriam o centro da cidade.

Até a Goodyear, até as siderúrgicas fechavam cedo na véspera de Natal e participavam da comemoração. Mas nos afastamos das luzes e seguimos para os cemitérios de máquinas velhas que faziam parte desse tipo de cidade desde o início da revolução industrial. Desanimei ao ver alguns milhões de caminhões–basculantes usados.

Então, num milagre de Natal, o tio Ed olhou seu Timex e disse que tínhamos algo mais importante a fazer. Procurar aquele caminhão foi só uma desculpa, um ardil. Íamos comemorar o Natal como homens.Primeiro, fomos à revenda de pão dormido e enchemos o caminhão de bolos de frutas, pãezinhos de canela e rosquinhas.

Depois, com açúcar de confeiteiro nos lábios, pegamos a Broad Street e passamos pelo coração enfeitado da cidade em seu dia mais festivo. As vitrines estavam iluminadas, brilhantes, as ruas cheias de compradores de última hora. Papai Noel estava numa esquina, tocando um sininho com entusiasmo. Eu o vi novamente na loja de música, dedilhando um violão, e outra vez com crianças no colo.

Perguntei ao tio Ed se algum deles era o Papai Noel de verdade, e ele só deu um trago em seu cigarro Winston e me disse que “provavelmente era aquele primeiro”.

Então viramos para o sul, rumo ao Big Chief Drive-In, que tinha um dos melhores hambúrgueres do nordeste do Alabama. Compramos dois cheeseburgers para cada um e uma pilha de batatas fritas que queimou meus dedos. Era cedo demais para a ceia e já passara da hora do jantar, mas coisas assim podem ser ignoradas.

Comemos na picape, ouvindo rádio. Então, ele olhou o relógio novamente e disse: “As mulheres vão ficar bem bravas se a gente não voltar.” Mas nos demoramos também na volta, admirando as luzes festivas, escolhendo o caminho mais longo. E, antes que a comemoração da véspera de Natal sequer começasse lá na Roy Webb Road, já tínhamos comemorado em Gadsden, Alabama, e na metade norte do condado de Calhoun. Foi o melhor Natal que tive durante muito, muito tempo.

Eu devia ter lhe dito isso enquanto ele estava vivo, mas as coisas vão ficando esquisitas quanto mais a gente vive. Portanto, embora já seja tarde demais, quero agradecer por isso, por ter me levado com ele. “E sempre se disse dele que sabia bem guardar o Natal…”

Alguns podem ler essas palavras de Dickens e pensar em boa literatura. Mas vejo o tio Ed no brilho de um rádio AM, sinto o cheiro de batata frita e cigarros Winston e ouço o tique-taque de um Timex velho que, naquele mais belo dos dias, não significou nada.