Natal em uma época improvável

O dia 21 de novembro, um sábado, estava cinza e nublado. A gente se lembra melhor de dias assim quando os observamos depois de uma noite insone. Há tempo

Redação | 1 de Dezembro de 2020 às 15:15

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O dia 21 de novembro, um sábado, estava cinza e nublado. A gente se lembra melhor de dias assim quando os observamos depois de uma noite insone.

Há tempo para observar o passar do dia quando temos de ficar na cama. Era lá que o médico me segurava. Caxumba aos 43 anos não é brincadeira.

Pela janela do quarto, dava para ouvir as ovelhas descendo a encosta para o pasto de baixo. Cinco delas tinham cincerros, cada um com uma nota individual. Naquela manhã específica, pareciam tocar música.

Apenas uma semana antes, o último de meus grandes serviços em nossa fazenda tinha terminado. Agora, uma forte cerca de alambrado circundava a terra toda. As ovelhas estavam protegidas dos cães.

Não me importei muito de me afastar por algum tempo do internato masculino onde dava aulas. Setembro e outubro são meses infernais para ajustar e organizar os alunos, e eu precisava desse descanso.

Na verdade, só faltaria ao trabalho cinco dias. O Dia de Ação de Graças seria na semana seguinte, e os alunos passariam o feriado em casa. Eu poderia ficar ali deitado e sonhar.

Eu experimentava uma sensação de aconchego e segurança, agora que nosso lar estava pronto. Minha mulher, Martha, e eu tínhamos olhado pela primeira vez essa encosta rochosa de Connecticut quando as velhas macieiras floresciam. Conseguiríamos comprar?, nos perguntamos.

Em pé na crista ossuda de 120 metros, olhamos lá embaixo o Vale Housatonic. O som das corredeiras do rio subia até nós. Quantas noites seu rugido gentil nos embalou para dormir… Decidi construir eu mesmo a casa com árvores da propriedade. As árvores poderiam ser cortadas e serradas, a madeira empilhada para secar? Pedras poderiam ser trazidas para chaminés e terraços? Às vezes, as pessoas plantavam sementes de desestímulo.

Sorri ao lembrar aqueles primeiros dias que me faziam ir correndo da escola até nosso apartamento, pegar um serrote de lenhador e seguir apressado para a floresta. Descobri que tirar troncos de encostas rochosas é o serviço mais duro que se pode fazer. Mas perseveramos, e os que duvidavam há muito tinham se calado.

Três anos se passaram e a casa já estava habitada. Algum dia eu poria o rodapé nos armários do andar térreo e forraria de cedro o banco da janela de nosso quarto. Então tudo estaria terminado. E faríamos todas as coisas que prometi à minha mulher em todos aqueles anos ocupados.

Era hora de Martha e as crianças acordarem. Minha porta se abriu suavemente. Martha apareceu.

– Fiquei acordado quase a noite toda – falei. – Estou com febre, acho, mas o médico disse que era de esperar.

– Vou manter as crianças quietas para você descansar – sussurrou ela.

As crianças olharam da porta, mas foram despachadas. Martha continuou seu trabalho da manhã. Depois trouxe seu café e se sentou comigo.

Ela falou de nossa ida a Maryland para o Dia de Ação de Graças com seu pai. Eu pedi desculpas por ter arruinado os planos. Ela disse que estava tudo bem.

A rotina encheu o dia. As compras foram feitas. Os convites para a festa de aniversário de Mary foram trazidos para casa e postos na gaveta de cima da mesa de costura. Os meninos foram brincar com os amigos. Minha febre subiu um pouquinho. As ovelhas foram pastar.

A noite foi tranquila. Martha arrumou as coisas de que eu precisaria para a noite. Depois subiu. Eu a ouvi indo de quarto em quarto, aconchegando as cobertas de três inocentes mundos de sonhos.

Outro dia de novembro se encerrava.

No colo de Deus

Naquela noite, antes de se deitar, Martha se sentou na beira da cama, pegou o diário e fez seu registro de sempre.

“Kip e D.B. [David] passaram o dia nos Greiners. Mary foi à casa de Molly à tarde e jantou lá. Noite de relaxamento. Ataque esquisito na garganta.”

Perto da meia-noite, Martha desceu a escada em silêncio e mencionou a estranha sensação de sufocamento na garganta. Eu lhe disse que ligasse para o médico, mas ela hesitou. Detestava incomodá-lo a uma hora dessas. Mas insisti, e ela ligou.

Quando chegou e a examinou, o médico ficou tão preocupado com o estado de Martha que ligou para a clínica e disse à enfermeira que preparasse um leito. Martha não queria ir, mas o médico explicou que seria sensato. Ele não queria que eu me levantasse caso ela precisasse de alguma coisa durante a noite.

Um ajudante veio e ajudou o médico a agasalhá-la para ir. Quando Martha insistiu que deveria entrar em contato com alguém para dar sua aula na escola dominical, o médico, brincando, atribuiu a tarefa ao ajudante.

A caminho da porta, Martha me disse para quem telefonar a fim de resolver as coisas de manhã e onde encontrar as camisas domingueiras dos meninos.

– Boa noite – sussurrei. – Vejo você pela manhã – disse ela.

E eles saíram.

O lado direito do coração bombeia sangue para o pulmão; o lado esquerdo recebe o sangue do pulmão. Quando acontece alguma coisa com o lado esquerdo do órgão, há um “ataque esquisito na garganta”.

Martha foi dormir na enfermaria. E o sangue subiu mais e mais. Subiu devagar; havia um turbilhonamento suave e silencioso. Ela não se mexeu nem acordou. Seu coração estava parando.

Houve um leve gorgolejo; então, ela não respirou mais. O dilúvio a levou lentamente... para o colo de Deus.

Mal se passara uma hora que Martha saíra e um carro subiu o morro. Esqueceram alguma coisa, pensei. A porta da frente se abriu. Silhuetados pela luz fraca que vinha do fim do corredor, estavam o pároco e o médico.

– Bill, tenho más notícias para você – anunciou o pároco.

Comecei a me levantar para acender a luz, mas ele me impediu.– Martha se foi. Sei que soa terrivelmente banal, mas ela foi da forma mais pacífica possível, enquanto dormia.

Enquanto meu mundo escapulia de mim, a voz do pároco ia aumentando, calma e forte, à medida que rezava:

– Que vossa luz eterna brilhe para sempre sobre ela. Quando passares pelos rios, eles não te submergirão. Na semiescuridão do quarto, uma inundação girava em silêncio.

O médico se sentou na beira de minha cama. Não disse nada.

Dali a alguns momentos, os dois foram embora. Teriam passado a noite, mas sabiam que o certo era irem. Quando reza, o homem reza sozinho; e quando amaldiçoa Deus, amaldiçoa Deus sozinho.

Eu só podia pensar que Martha deixava o mundo melhor. Deus não quer o mundo melhor? Quais foram as últimas palavras de quem só falava de bondade e amor? Quais foram as últimas palavras de quem amou Deus e todos os seus filhos?

“Vejo você pela manhã.” Senti que os amanhãs para os quais Martha e eu nos preparamos tinham acabado. De repente, eu era um velho. Não faria planos. Durante horas silenciosas eu chorei, até que a escuridão deu lugar a uma aurora sombreada de tristeza.

Finalmente, ouvi passos lá em cima. Uma porta se abriu. Eu sabia que era Kip – Christopher, na verdade, mas ele preferia ser chamado de Kip – indo ao quarto da mãe. A longa noite estava terminando. Agora, Kip, David e Mary seriam puxados para as águas turbulentas.

Coraçõezinhos partidos

Se fosse uma manhã comum, Kip iria de quarto em quarto para ver se todos estavam onde deviam estar. Quando encontrava um livro aberto virado de borco na mesa de cabeceira, ele marcava a página com a orelha da sobrecapa e punha o livro no canto exato da mesa. No quarto de Mary, ele tiraria o cobertor azul do chão e o poria de volta na cama.

No quarto de David, rearrumaria os índios de plástico – cavalos brancos e índios pretos de um lado, cavalos azuis e índios marrons do outro. Em seguida, desceria e anunciaria com orgulho no café da manhã: “Endireitei a casa.”

David era um ano e meio mais novo do que Kip; logo faria 7 anos. Em geral, ele dormia mais. E Mary, que os irmãos chamavam carinhosamente de Sis (sister, irmã), seria a última a acordar. Ela estava prestes a completar 5.

Kip estava descendo a escada. Eu o chamei. Uma mulher que trabalhava em minha escola viera preparar o café da manhã. As crianças não deviam vê-la antes que eu falasse com elas.

– Por que mamãe se levantou tão cedo? – perguntou Kip.

– Kip, suba e chame David e Sis – pedi. – Tenho de lhes contar uma coisa.

Segundos depois eles desciam, rindo e correndo com inocência. Sempre guardávamos pedidos e surpresas para a manhã. Quando havia uma viagem ou um convite, esperávamos para lhes contar no mesmo dia, porque mentes pequenas ampliam a empolgação até empurrar o sono para muito longe.

Portanto, compreendi os risos.

Eles empurraram a porta. Houve um longo silêncio, que chegou aos confins da Terra e voltou.

Eu não queria lhes contar. Como tiraria de suas vidas uma coisa para a qual não há substituto na Terra?

– Nós vamos a Pittsfield visitar o tio Andy e a tia Margaret? – Mary perguntou.

– Não – respondi. – Ontem à noite mamãe ficou doente e o médico a levou para a enfermaria. Ela foi dormir e morreu dormindo. Foi para o céu, e não a veremos de novo por muito tempo. Mas a veremos outra vez no céu.

Kip chorou e falou por todos.

– Queremos mamãe.

O coração de David pareceu se partir tão depressa que não houve uma única lágrima. Só o sumiço da cor em seu rosto me mostrou os mil caquinhos.

Mary, ainda tão pequena, não conseguiu entender a enormidade do que eu dizia. Mas, quando perguntou “Quando mamãe volta?”, também vi a Terra sumir embaixo dela.

Eles não acreditaram. Ouvi as portas se abrirem e fecharem enquanto vasculhavam a casa atrás de algum sinal familiar na paisagem de suas vidas, que, de repente, se tornara estranha e desconhecida para eles.

Os três voltaram. – Mamãe não está aqui” – disse David, mas ainda consegui ouvir dúvida em sua voz.

– O espírito da mamãe está aqui – expliquei – e ficará aqui enquanto nós permanecermos. – Ele nunca nos abandonará. – Eu sabia que ele não entendia direito. – Agora, vocês vão tomar o café da manhã e depois se aprontem para a escola dominical.

Eles precisavam ir à igreja, onde ouviriam novamente que Deus nos ama. Será que acreditariam? Eu conseguia acreditar que Deus nos ama? Ele destruíra o que me dera.

– Mas mamãe não está aqui para nos levar.

– Os Smiths vão levar vocês.

Nisso, pessoas tinham chegado à nossa casa, pessoas maravilhosas, tentando retribuir o amor e a bondade que Martha lhes dera. Vieram em silêncio até a porta e bateram.

“Por favor, nos diga de que maneira podemos ajudar.”

Como minha mulher parecia feliz quando saiu naquela noite. Com quanta negligência lhe dei boa-noite. Por que Deus me impediu, no fim, de abraçá-la e lhe dizer como eu a amava?

Grandes ondas de silêncio e tempo formaram a noite seguinte. Agora, ondas de dúvida se quebravam sobre mim. O que eu faria?

“Não temerei mal algum”

Na manhã de segunda-feira, Kip e David foram para a escola, Mary para a creche. Percebi atraso e confusão na saída deles. Antes que descessem o morro, Martha sempre ouvia as orações matutinas dos filhos. Eu só ouvia as orações deles quando Martha viajava.

Então eles pediam a Deus: “Ajude mamãe a se divertir, a voltar para casa em segurança e nos trazer algo legal.”

O luto é uma coisa escura e pesada, difícil de penetrar. David tentou. Quando voltou da escola na segunda-feira, entrou e ficou junto à cama. “Mamãe vai pedir a Deus que faça você ficar bom”, disse ele, “e é isso que queremos. Quando você vai fazer a barba?”

Quanto a Kip, ele estava ocupado, se preparando para uma peça de Ação de Graças na escola. Disse que pediu aos amigos que não falassem de mamãe estar morta.

Mary trouxe um cachecol a meu quarto. “Este é o cachecol da ma-mãe. Ela ainda está aqui em casa.” Muitas vezes, nos dias que se seguiram, ela me diria que mamãe ainda estava presente porque seu cachecol estava na cômoda ou sua caneta na escrivaninha.

Enquanto o dia cinzento de novembro se desenrolava, se condensava e se transformava em noite, uma procissão de devotos e curiosos passou por nossa casa. Estavam prestando suas homenagens a Martha pela última vez, mas eu continuaria a vê-la para sempre.

Depois que as crianças foram se deitar, as pessoas na casa se moveram em silêncio. Pedi a uma delas que me trouxesse o livro de orações da mesinha de cabeceira do andar de cima. Mais tarde, eu contaria a meus alunos que chega uma hora em que encontramos consolo em algo que antes achávamos pequeno.

Na terça-feira, depois que voltaram da escola, as crianças se vestiram para o funeral. Não pude ir com elas; o médico ainda não me deixava sair da cama. Os meninos vestiram as camisas de domingo. Mãos estranhas trançaram o cabelo de Mary. Duas pessoas bondosas ficaram para me fazer companhia.

Na igreja, segundo me contaram depois, nossos amigos se reuniram em silêncio. O pároco falou com voz clara e grave: “Sou a ressurreição e a vida, disse o Senhor; quem crê em mim, ainda que esteja morto, viverá; e todo aquele que vive, e crê em mim, nunca morrerá.”

Christopher olhava para a frente. Não queria que ninguém o visse limpar as lágrimas. David estava de frente para o corredor, mas fitava o chão. Estava fixo e imóvel. Mary viu a professora da creche no outro lado do corredor e conseguiu dar um leve sorriso.

“Ensina-nos a contar os nossos dias, de tal maneira que alcancemos corações sábios”, continuou o pároco.

Eu acreditava que Martha só usou uma porção de seus dias; tínhamos acabado de comemorar seu 43-ºaniversário na quinta-feira anterior. Eu lhe dei xícaras de chá de presente.

Agora elas pegariam poeira no armário. Um dia, eu as daria a Mary. A voz do pároco encobriu os leves soluços sufocados de David: “Deus é o nosso refúgio e fortaleza, socorro bem presente na angústia. Portanto, não temeremos, ainda que a terra se mude, e ainda que os montes se transportem para o meio dos mares, ainda que as águas rujam e se perturbem, ainda que os montes se abalem pela sua braveza.”

As amigas de Martha cantaram um de seus hinos favoritos: “Ainda que ande pelo vale da sombra e da morte/eu não temerei mal algum/porque tu estás comigo/e o teu cajado me consola/tua cruz à frente a me guiar.”

E, no dia seguinte ao de Ação de Graças, Martha foi sepultada no morro que dá para o Riacho Rock, em Rockville, Maryland, “na esperança segura e certa da ressurreição para a vida eterna”.

A cadeira vazia

No 14º dia depois de eu ter sido confinado ao leito, o médico finalmente permitiu que eu me levantasse.

Eu queria ficar sozinho com as crianças, andar pela casa por conta própria, e o último vizinho bondoso foi embora. Um estranho fascínio me mandou de quarto em quarto, procurando algo que preenchesse o vazio.

As crianças estavam caladas. Por que Mary não falava com as bonecas enquanto brincava? Por que os meninos não começavam a brigar no porão? Agora só havia o zumbido tedioso e o chocalhar do trenzinho de brinquedo que dava voltas e mais voltas monótonas.

Finalmente, não aguentei mais o silêncio escuro. Andei até o pasto das ovelhas e olhei o prado lá embaixo. Era um dia chuvoso de dezembro, e uma neblina branca pendia sobre as montanhas. O som dos cincerros das ovelhas vinha fraco morro acima. A umidade pesada da terra e do ar parecia absorver até o som.

Em pé no morro, abaixo da neblina, quis recordar um quadro completo de toda a felicidade dos 12 anos em que Martha e eu ficamos juntos. Não havia quadro total, só pequenos fragmentos de tempo e espaço.

Veio a lembrança de um passarinho castanho cantando no início da aurora junto à janela do hospital. Por que me recordo disso com tanta clareza e não consigo nem me lembrar das palavras do médico que anunciou que tivemos um menino?

Recordei um momento em que me sentei nos fundos da capela e chorei em silêncio quando Martha representou Maria numa peça de Natal. Pessoas lhe mandaram cartas dizendo que ela representara lindamente o papel.

Lembrei-me da vez em que Martha veio à porta de minha sala de aula por alguma razão e me disse que o sorriso que eu dava em sala era o mais luminoso que já vira em mim. Ela sabia que eu amava meu trabalho.

Um dia claro de outubro também me voltou. Liguei da escola para Martha e lhe perguntei se ela gostaria de dar uma volta comigo. Eu ia ver algumas ovelhas que estavam à venda. Era uma viagenzinha de uns 20 minutos. Nem sei por que achei que ela gostaria de ir, mas ela ficou entusiasmada.

Apreciamos o melhor do outono naquele dia, indo pelo vale e voltando pela montanha. Não consigo nem lembrar o que conversamos. Aquela manhã foi algo fora do comum? Na época, não pareceu, mas agora voltou e lá ficou sozinha, destacada de todas as muitas viagens e passeios que fizemos juntos. Encostado na porteira, aqueles poucos minutos de aparente insignificância subiram de um vácuo escuro para a luz.

Voltei para casa com pés de chumbo. Sabia que precisava preparar minha primeira refeição para as crianças. Como seria? O que eu faria de errado? Fiz batata assada e costeleta de carneiro, com vagem congelada que Martha e eu tínhamos preparado.

Enquanto eu me movia entre o fogão e a pia, Mary entrou na cozinha. 

Ela olhou em volta e perguntou: “O que posso fazer para ajudar?”

Quando por fim consegui falar sem tremer, eu lhe disse que, a partir de então, sua tarefa regular seria pôr a mesa.

Ela o fez com graça e eficiência, e em pouco tempo anunciou que estava tudo pronto. Olhei a mesa. Ela arrumara tudo para cinco pessoas.

A cadeira de Martha ainda estava no lugar de sempre. Naquele segundo, a cadeira foi uma coisa horrível de ver, mas mesmo assim foi difícil para mim afastá-la da mesa.

A refeição foi quase insuportavelmente silenciosa. É terrível quando crianças ficam em silêncio, pois isso significa que estão muito doentes ou muito magoadas.

Nas semanas seguintes eu observaria dolorosamente cada garfada de comida e verificaria com atenção se o leite fora bebido. Eu falava o tempo todo com Mary sobre a comida. “Dois pedaços disso. Você tem de comer.”

Finalmente, decidi que tentaria o silêncio por uma refeição. Ela ficou sentada sem tocar a comida. Dali a algum tempo, não aguentou mais a falta de atenção. “Pai”, perguntou, “você não vai me mandar comer?” Depois disso, não tivemos mais problemas com seus hábitos alimentares.

Aos poucos a conversa voltou, e até um raio ocasional de sol perfurava a névoa cinzenta do pesar. Algo que preparei era tão bom quanto o da mamãe. Algumas coisas até pareciam gostosas. Lentamente, as crianças reaprenderam a correr para a mesa, em vez de andar sem destino e em silêncio, como fizeram naqueles primeiros dias sombrios.

Os sinais de felicidade das crianças demoraram para chegar. Entendi a verdade da observação de Abraham Lincoln: “Neste nosso mundo infeliz, a tristeza chega a todos, e aos jovens chega com a mais amarga agonia, porque os pega de surpresa.”

Durante muito tempo, Kip, David e Mary ainda esperaram que mamãe voltasse. Kip procurava em silêncio. Em muitas manhãs, eu ouvia seus passos.

David subia o morro na volta da escola, abria a porta e chamava automaticamente: “Mamãe!” Então passava pelos cômodos do andar térreo, subia e, devagar, sem dizer palavra, descia à cozinha para tomar seu leite com biscoitos. Mary também estava confiante. “Quando mamãe vai voltar?”, perguntou por muitos dias.

Sua sensação de expectativa era contagiosa. Nas longas noites, eu me via pensando: É quinta-feira, e ela logo voltará do grupo de bridge. É terça-feira, e ela logo voltará do clube de leitura. É domingo à tarde, e ela logo acordará do cochilo e levará as crianças para passear. Mas só o que restava era silêncio e uma profunda quietude.

Mary e os elfos

Agora sei por que as mães vivem cansadas. A energia gasta para cuidar de crianças é maior do que para derrubar árvores, carregar pedras e construir uma casa, tudo somado. Aprendi que, para correr bem, o dia tinha de começar cedo.

Além de cuidar da escovação dos dentes, havia o problema de inspecionar rostos, unhas, mãos e orelhas antes da escola.

Tudo precisava de organização, agora que o toque de mamãe se fora. A responsabilidade passou a fazer parte de suas jovens vidas. Organizamos os serviços que podiam ser realizados depois da escola. Escrevemos o telefone do médico, para que fosse chamado caso alguém adoecesse.

A princípio, até questões de rotina eram problemáticas. Uma conferência prolongada foi necessária para separar a primeira carga de roupa lavada. De quem são essas meias? O pijama vermelho é seu? De quem é a camisa azul? De quem é a branca?

Encontramos uma solução. David ganhou meias verdes e azuis quando compramos mais. Kip, meias vermelhas e amarelas. David tinha camisas azuis; Kip, brancas. Kip aprendeu a separar a roupa lavada, e os três aprenderam a guardar direitinho.

Tudo exigia planejamento. Enquanto escovava os dentes à noite, Mary aprendeu a pensar em que vestido usaria no dia seguinte. O tempo precioso da manhã não permitia esse tipo de decisão.

Os meninos aprenderam a fazer sua cama e competiam pela recompensa semanal da cama mais bem-feita do quarto. Mary não conseguia fazer a sua, mas aprendeu bem depressa a pôr a roupa suja no cesto e a pendurar o vestido quando voltava da escola. Nas manhãs de sábado, Mary esvaziava todos os cestos de lixo, e Kip e David tiravam o pó da casa inteira. Aprendemos o valor do tempo.

As vezes, grandes problemas foram resolvidos de forma tão simples que me espantava que tivessem sido um problema. Na primeira noite sozinhos depois da morte de Martha, estudei com cuidado as tranças de Mary enquanto ela dormia. Estavam apertadas e perfeitas. Não entendi por que Martha se dava ao trabalho de trançá-las de novo toda manhã. Com certeza elas aguentariam alguns dias até eu aprender a fazê-las.

Fui ajudar Mary a se vestir na manhã seguinte… e não acreditei em meus olhos. As tranças pareciam cordas puídas. Mechas de cabelo caíam diante dos olhos dela.

Eu tinha aprendido a desfazer e unir cordas quando era escoteiro. Talvez algo com o mesmo princípio dê certo, pensei.

Depois do café da manhã, comecei. Parecia que alguém ou alguma coisa tinha tecido pequenas teias no cabelo macio e sedoso de Mary. Desfizemos os nós e começamos a trançar, primeiro com duas mechas. Quando terminamos e prendemos as pontas com elásticos, as tranças se desfizeram como molas. A próxima tentativa foi com três mechas.

Elas aguentaram. Mary ficou algum tempo em silêncio e aí começou a chorar.

Encontrei a solução desse trauma com um ritual diário. Juntos, criamos uma história a ser recontada toda manhã enquanto eu trançava seu cabelo. Pela janela do banheiro, víamos uma velha nogueira-branca. Galhos mortos estavam presos entre os vivos. Ela crescera sobre uma laje de pedra calcária, e havia uma abertura na laje sob a árvore.

Decidimos que nenhuma árvore seria mais adequada como lar de elfos do que uma velha nogueira-branca deformada e comida de vermes.

Então, contava nossa história, dois elfos moravam sob a nogueira-branca. Eram elfos bons, porque eram elfos tecelões. Passavam seu tempo ajudando as aranhas a tecer teias para pegar insetos maus. Às vezes, por amarem seu trabalho, eles punham gotinhas de orvalho minúsculas nas teias. Pela manhã, víamos as teias prateadas na cerca que subia o morro.

No inverno, os elfos não tinham teias para fazer, porque todas as aranhas e todos os insetos maus tinham se encolhido sob a casca das árvores para dormir. A fim de manter os dedos ágeis, os peque-nos elfos vinham toda noite, quando Mary dormia, e teciam pequenas teias em seu cabelo, que chamamos de nós. Não estavam sendo malvados.

Eles sabiam que, se não tecessem, não escovaríamos nem pentearíamos seu cabelo direito, e ele não ficaria macio e bonito. Os dias se tornaram semanas e meses. Mary não se importava mais que eu fizesse suas tranças. Não havia mais lágrimas na hora de trançar. E o melhor de tudo foi que as tranças a deixavam parecida com a mãe.

Sob águas paradas

Um pessegueiro que Martha e eu plantamos no jardim ficou tão grande que um dos galhos alcançou o laguinho. Numa noite chuvosa de dezembro, algumas semanas depois de sua morte, muito depois que a chuva parara, fiquei lá fora observando as gotinhas do galho caírem na água.

O luar, rompendo as nuvens, se espalhava pelos círculos de ondinhas. Naquele momento me lembrei de um versículo das Escrituras: “E a luz resplandece nas trevas, e as trevas não a compreendem.” O mundo de Martha foi um verdadeiro mundo de luz.

Recordei o dia em que um homem quase desconhecido esperou por mim diante do armazém. Ele começou a falar de Martha.

“Ela era sempre tão alegre. Sempre que a via, o carro parecia cheio de crianças sorridentes. Sinto saudades dela na aldeia.”

Pouco depois da morte da minha mulher, uma carta foi publicada no jornal de nossa aldeia. “Cara Martha Armstrong”, começava. “Que tragédia de rasgar o coração você ter deixado nossas vidas enquanto você ainda era tão jovem e tanto tinha a dar, principalmente a querida e amorosa bondade que você daria a seus filhinhos e a todos os que se aproximavam de você.”

Esperei que a última gota caísse no laguinho. Depois, entrei em casa para embrulhar pacotes, endereçar cartões e lembrar as outras 101 coisas que teria de fazer nos últimos quatro dias antes de primeiro Natal sem Martha. Tantas coisas já tinham acontecido. Uma vizinha bondosa deu a Mary sua quinta festa de aniversário. Kip e David ensaiavam a procissão de Natal na igreja.

 Mais de metade dos 300 meninos da minha escola compareceu a um réquiem especial da Santa Eucaristia para Martha na manhã do funeral.

Com sua mesada semanal, os meninos juntaram 500 dólares e compraram um vitral para a capela em memória de Martha. No jornal da escola, escreveram: “Ela era uma alma que possuía amor ilimitado a Deus e a todas as pessoas que Ele fez.”

Quando chegou meu dia de retomar as aulas, me vi fitando a janela enquanto cumprimentava os meninos, engasgando a cada palavra. A tristeza deles estava em seus olhos. De vez em quando, um deles, incapaz de aguentar, saía da sala em silêncio.

Mas o Natal se aproximava, e percebi que precisava fazer da temporada uma época alegre para Kip, David e Mary.

Fizemos as coisas que as pessoas geralmente fazem no Natal. Pusemos no correio os cartões que Martha já começara a endereçar. Assinamos papai, Kip, David e Mary.

No meio das decisões sobre o que dar a esse ou àquele amigo, David parou e perguntou: “O que podemos dar à mamãe no Natal?”

Para o Natal da mamãe, construímos um genuflexório numa das paredes da sala de estudos. Usamos tábuas de pinho que sobraram da construção da casa. Pusemos sua foto sobre o genuflexório e uma lâmpada sobre a foto. Fazíamos nossas orações da manhã ali, e à noite, quando pedíamos a Deus que guardasse nossa alma.

Montar a árvore na véspera de Natal depois que as crianças iam dormir, antes uma enorme alegria para mim e Martha, agora se tornava uma corrida contra a manhã. Era difícil acreditar que ela não estava ali. Eu ficava pensando que, certamente, ela voltaria do culto da meia-noite para ajudar a arrumar os presentes. E, pela manhã, desceria para ver os olhos esgazeados e ouvir as exclamações de prazer.

Naquela véspera de Natal, quando fui de quarto em quarto olhando meus filhos, eu me perguntei, de forma meio audível: “Como podem não ter a mãe pela manhã, logo essa manhã em que seu coração deveria transbordar de alegria e felicidade?”

Ao observá-los dormir, me perguntei se sentiam um silêncio sombrio ou se sonhavam sonhos de criança. Rezei para que a alegria do dia aliviasse a tristeza que esmagava seus jovens corações.

A noite ficou muito fria e, quando o sol nasceu sobre nossa montanha, vimos que todas as gotas de chuva tinham se transformado em prata e que todas as árvores tinham se tornado árvores de Natal.

Escutei Kip acordar David e Mary. Todos desceram juntos. Vi a alegria que dançava em seus olhos. Por algum tempo, ela tremulou como a chama de uma vela, mas não se apagou. E, naquele momento de gratidão, soube que a alegria deles se refletia em meus próprios olhos.

David, Mary e Kip na primavera de 1956, junto ao lago no pé do morro, diante da casa que o pai deles construiu.

Finalmente chegou o fim do inverno. Os corvos juntaram restolho no campo e o levaram para fazer ninho nas montanhas. O chapim começou seu assovio de duas notas.

As ovelhas começaram a procurar os pontos que degelavam mais cedo, atrás de brotos de capim novo. As crianças trouxeram os amigos para ver os novos cordeirinhos. A crosta da terra se rompeu e as flores brotaram.

Martha amava a primavera. As flores se abriram sem ser tocadas e morreram em sua haste. Não havia ninguém para trazê-las para dentro de casa. Mas Kip, David e Mary sabiam que ela as via e gostava delas, e ela está num jardim onde as flores não murcham nem morrem na haste, e seu brilho não desbota.

Em 1996, William Armstrong escreveu: “Muitos anos se passaram desde que Martha deixou de andar nesta terra, mas seu legado de amor e fé nos sustentou. Enquanto nossos filhos e eu fazemos nossa jornada pela vida, ela ainda está conosco.”

Kip virou professor, como o pai, e Mary e David se tornaram artistas plásticos. Na verdade, o amor pela arte é coisa de família; tanto Rebecca, filha de Kip, quanto Chris, filho de David, também se tornaram artistas.

William continuou a ensinar e escreveu muitos livros, inclusive o premiado romance Sounder, para jovens. Ele faleceu em 1999.A casa em Connecticut continua na família Armstrong. Katy, filha de David, mora lá com seu companheiro, Tim, e os filhos, Atticus e Willy.

Pinturas, gravuras e desenhos de numerosos membros da família, inclusive de William e Martha, adornam as paredes da casa que William construiu.

por William H. Armstrongdo livro Through Troubled WaTers