Dando a mão

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Redação | 1 de Agosto de 2020 às 01:01

Helena Lansky/Shutterstock -

–Você precisa vir para cá agora! – sussurra ansiosa a enfermeira ao telefone.

Passa da meia-noite. Uma das pacientes de nosso hospital para doentes terminais morreu em casa, e o marido ameaça se matar com um tiro se a funerária aparecer.

– Alguém já ligou para a funerária? – pergunto.

– Não – responde ela. Foi essa sugestão da enfermeira que o fez sair de si.

– Ele tem alguma arma?

– Estamos no campo. Há cabeças de veado empalhadas na parede.

As cabeças de veado revelam que provavelmente há muitas armas.

– Ele ameaçou machucar mais alguém?

– Ele diz que pode levar um dos caras da funerária com ele, mas acho que não falou a sério.

No entanto, ela não tem certeza. É enfermeira substituta e não conhece o homem nem a paciente. É claro que eu também não. O assistente social regular da paciente está de folga hoje, e eu estou de plantão.

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Concordamos em não ligar ainda para a funerária. Então, pulo no carro. Enquanto dirijo, minha mente volta a uma noite anos atrás. Eu, na pós-graduação, estava num bar com amigos, envolvidos numa conversa intensa sobre, vejam só, a morte.

“Sabe o que me ajuda quando penso na morte?”, perguntou Claude. “Penso naquele salmo sobre o vale da sombra da morte.”

Ele deve estar de brincadeira, pensei. Claude era professor e ateu inveterado. Ele recitou o Salmo 23:4: “Ainda que eu andasse pelo vale da sombra da morte, não temeria mal algum, porque tu estás comigo; a tua vara e o teu cajado me consolam.”

Meu celular toca e me arrasta de volta ao presente.

– Ele está bebendo – informa a enfermeira com rispidez. – Parece que é coisa forte.

Peço-lhe que entregue o telefone a ele, que o pega e diz:

– Ela está exagerando… Só estou desabafando. – Ele se chama Pete; a mulher era Jimmie. – Vocês acham que sou maluco, não é?

– Não, achamos que você está sofrendo. Mas, se continuar a beber, terei de envolver a polícia para garantir que nada de mau aconteça.

– Tudo bem, vou guardar o uísque – diz ele com rispidez.

Conversamos sobre Jimmie e a vida dos dois juntos.

– O que acha que Jimmie lhe diria agora se visse o que está acontecendo? – pergunto.

Ele começa a chorar.

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– Ela me mandaria calar minha maldita boca e deixar os outros me ajudarem.

Ele devolve o telefone à enfermeira.

– O homem está num universo de dor – digo a ela. – Precisamos responder à dor sem deixar o comportamento dele nos tirar do sério.

Dali a minutos, pego uma estrada de terra com uma placa dizendo “Não Entre”. Minha mente retorna a Claude no bar. Até então, nossas conversas tinham patinado sobre a superfície
intelectual. Naquela noite, percebi que Claude, um homem mais velho em quem a vida aplicara muitos golpes, se mostrava incomumente vulnerável. Sem querer me envolver, zombei:

– Você não é o cara que sempre desdenhou dessas coisas, chamando-as de distorção da realidade?

Ele sorriu, a boca só um pouquinho torta.

– Eu me consolo ao pensar que não estarei sozinho naquele vale, que haverá alguém comigo, seja Deus, seja um amigo, seja até um desconhecido. – Então, ele ficou sério. – Talvez seja você a me estender a mão no vale algum dia.

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Quando entro na casa de Pete, ele está no quarto com o corpo de Jimmie, sentado na cama, acariciando seus cabelos. Sento-me ao seu lado. Ele é um homem grande, de aparência rude, nariz torto e braços musculosos e tatuados. “Eu a desapontei”, inicia ele. “Passava todo o tempo trabalhando. Nunca lhe disse o quanto a amava.”

Em vez de deixá-lo afundar numa narrativa de culpa, perguntei o que ele fazia. Ele descreve os longos dias passados na clínica oncológica, a construção de uma rampa para que, na cadeira de rodas, ela pudesse cheirar suas roseiras, os turnos extras trabalhados para pagar os remédios. Com lembranças como essas, chegamos ao modo como ele expressava seu amor: não com palavras, mas com gestos de afeto e atos de lealdade e sacrifício. Conversamos a noite toda. Finalmente, Pete me deixa chamar seu amigo Tank, que aparece bem na hora em que o pessoal da funerária chega.

Pete, Tank e eu discutimos as ameaças de Pete e o que as provocou. Falo sobre estratégias para lidar com a dor e otimizar o apoio. Mas essas recomendações dos livros ficam aquém do simples imperativo de abrir meu coração e estar inteiramente presente com alguém que sofre. E, como passei a acreditar, era disso que Claude falava: o poder de ir na direção do sofrimento do outro, em vez de se afastar.

Na volta para casa, exausto, reflito sobre as palavras que Tank me deixou. “Você o acompanhou durante a noite, Scott”, disse ele. “Eu e minha mulher continuamos a partir daqui. Prometo.”

Fiquei triste com a perda de Pete. Mas sei que ele estará cercado de amor. E, com os olhos da mente, vejo Claude erguendo a garrafa de cerveja e me dando um de seus sorrisos tortos.

POR SCOTT JANSSEN de PULSE – VOICES FROM THE HEART OF MEDICINE

PULSE (12 DE JANEIRO DE 2018), © 2018 DE SCOTT JANSSEN. PUBLICADO POR CORTESIA DE PULSE – VOICES FROM THE HEART OF MEDICINE, PULSEVOICES.ORG.