Minha escola foi um bar

Era um lugar incomum para educar filhos, mas os personagens que esse menino conheceu no bar do pai lhe deram uma aula magna sobre a vida.

Redação | 1 de Novembro de 2020 às 01:02

Tim Bower -

Cresci num bar. Enquanto a maioria dos garotos de minha idade estava na praça jogando bola ou andando de bicicleta, eu observava os velhos jogando sinuca. Vi uma briga de bar antes mesmo de assistir a um evento esportivo na TV. Não creio que o livro do Dr. Spock sobre cuidar de filhos, tão popular há 50 anos, aconselhasse os pais a expor a criança a bebidas na penumbra em tenra idade. Mas lições podem ser dadas por professores improváveis em ambientes incomuns. Para isso, basta que os instrutores tenham o coração puro. A perspicácia é opcional.

A vida no M Ninety-Seven

Meus pais tinham um bar chamado M Ninety-Seven, nome de uma estrada próxima, na esquina entre as avenidas Hoover e State Fair, em Detroit. Construído na década de 1930, tinha um balcão comprido de madeira que ficava à direita de quem entrava. Ele se curvava no final, com luminárias de quatro lados, do tipo que se vê em filmes antigos passados no século 18 em Londres, que pendiam sobre o balcão mais ou menos de metro em metro. Os fregueses se sentavam em bancos altos, com encosto de vinil laranja-queimado, ou numa das seis mesas encostadas na parede. O chope era sempre Miller.

Meu pai passou a vida inteira servindo bebidas e dando alegria a uma clientela eclética. Havia os executivos de colarinho-branco que paravam para amenizar o estresse do dia. Ficavam lado a lado com operários e trabalhadores braçais. Sempre me surpreendia que conseguissem se misturar. É claro que 250 ml de chope e/ou de qualquer bebida destilada servida sobre gelo têm o talento de ajudar os dois grupos a encontrar um terreno em comum. Eu me sentava na última mesa junto à cozinha, bebendo Coca-Cola e comendo um saquinho de batatas fritas com minha irmã gêmea, observando tudo.

Era o reality show na versão da década de 1960. Havia Cran, o mestre-escola, que sempre dizia que dava notas aos alunos privados de sono numa curva em S e distribuía notas suficientes para passar até entre os que cochilavam, porque sabia que compensavam o sono perdido na vida familiar problemática. Quando ficavam acordados, os alunos recebiam B. Quando dormiam em sala, C.

E havia Big Bill, o policial de fala dura com quase 2 metros de altura, que pesava pouco menos que o caminhão de cerveja que tomava diariamente. Bill não era o que se chamaria de politicamente correto. Na verdade, às vezes era difícil escutar suas opiniões sobre a sociedade. Mas, certa noite, ele mostrou que era só da boca para fora. Quando estava de patrulha, Bill recebeu um chamado no rádio sobre um prédio em chamas a poucos quarteirões de onde estava. Ele correu para o local e chegou antes dos bombeiros. O prédio ardia. Ele subiu correndo três lances de escada no meio da fumaça e das chamas para resgatar duas crianças assustadas. O policial corpulento as trouxe nos braços como se cada uma fosse uma caixa de ovos. O homem de boca explosiva, mas coração do tamanho de um barril, salvou o dia. Foi uma pena que Bill não estivesse no bar para impedir um homem de comer um cinzeiro cheio de guimbas para ganhar uma aposta!

Sem dúvida, o freguês mais memorável do estabelecimento era um homem apelidado de Prefeito da Avenida State Fair. Os pais o chamavam de Frank, mas no bairro inteiro todos o conheciam como Sr. Prefeito. Ele morava a um rolar de garrafa de cerveja do estacionamento dos fundos, e o bar se iluminava quando o Prefeito iniciava a sessão. Tinha a língua hábil, a ponto de convencer minha avó abstêmia a tomar uma cerveja com ele.

Frank era calvo, usava óculos e um cardigã sobre o corpo magro. Estava aposentado do emprego de ferramenteiro quando o conheci. Ele e sua adorável mulher, Eleanor, tinham nove filhos, que os abençoaram com 48 netos e, digamos apenas, vários bisnetos. Frank e Eleanor criavam a grande ninhada com seu escasso salário. Juntos, moravam no pequeno bangalô que tinha mais corpos do que maçanetas.

Frank costumava dizer: “Não tenho um penico para urinar nem uma janela para jogar fora o xixi.” Ainda assim, não importava quanto bebesse, ele nunca dormia sem fazer uma oração ao “outro”. Ele me contou, e a mulher confirmou, que nunca, nem uma vez, pediu ao Senhor algo para si. Um sujeito sem penico nem janela, com mais bocas para alimentar do que a família Sol-Lá-Si-Dó, que nunca pensou em pedir para encontrar uma ou duas notas de 100 sob a porta da frente para facilitar um pouco as coisas no velho bangalô. Em vez disso, com olhos injetados, Frank rezava por outras pessoas em todas as noites da vida. Não conseguiriam engarrafar uísque Kessler suficiente para fazê-lo esquecer o ritual noturno.

Os anos se passaram, meu pai morreu e o bar foi vendido. Como a fumaça ingerida pelo fumante passivo, as palavras e as pessoas daquele bar ficaram comigo.

Certo dia, anos depois, recebi a triste notícia de que o Prefeito da Avenida State Fair havia morrido. Eu sabia que tinha de ir ao velório prestar meus respeitos ao homem que sempre pusera o outro em primeiro lugar. Eu estava a duas décadas de distância do menino na mesa dos fundos e agora trabalhava nos Correios. O estacionamento estava cheio e a calçada lotada de gente aguardando para entrar. Naquela tarde de domingo, não consegui chegar a menos de dois quarteirões da funerária. Fiquei na fila, sorrindo ao sol de verão, e comecei a refletir sobre aqueles dias enfumaçados de tanto tempo atrás quando, na mesa dos fundos, eu tinha um lugar na primeira fila do maior espetáculo da Terra.

Pensei em Cran, o professor que percebia que a vida difícil torna mais  benéfico descansar a cabeça cansada num livro do que ter o nariz enfiado nele. Ponderei como as pessoas conseguem falar uma coisa e fazer outra, e até arriscar a vida, como o policial Big Bill, e como faz bem a todos nós prestar pouca atenção ao que as pessoas às vezes dizem e dar atenção absoluta ao que fazem. Um homem com poucos bens mundanos me mostrou que é importante se preocupar mais com o fardo do outro do que com o seu. A fila de gente aguardando para prestar seus respeitos era a prova.

Eu me lembrei de todos aqueles fregueses antigos que despencavam numa cadeira em minha mesa para derramar sabedoria acima do barulho da jukebox, me dizendo a mesma coisa: que eu teria uma educação melhor no bar do que na escola.

Estavam certos. Sem dúvida, retive mais da sabedoria que eles me revelaram no bar do que de tudo o que aprendi numa sala de aula.


POR JEFFREY SABBAG