Paixão ao pé da letra

Onde os bibliófilos trocam juras de amor? Confira um emocionante relato de como o amor por livros uniu duas pessoas.

Redação | 1 de Outubro de 2020 às 01:01

BRIAN REA -

Sempre fui leitora. Quando criança, andava até a biblioteca várias vezes por semana e ficava acordada até tarde lendo com a lanterna. Eu tirava tantos livros e os devolvia tão depressa que certa vez a bibliotecária ralhou comigo:

– Não leve para casa tantos livros assim, se não vai ler todos.

– Mas eu li todos – respondi.

Estudei Letras na faculdade e fiz mestrado em Literatura. Quando criei meu perfil de namoro na internet, usei “missbibliophile52598” (Srta. Bibliófila 52598) como nome. Ao preencher a seção sobre “livros favoritos”, deixei meu gosto literário falar por mim: Cem anos de solidão, Paris é uma festa, Caninos brancos, O xará, O mundo conhecido, O deus das pequenas coisas, Uma perturbação no ar.

Mas percebi que fazia mais de dois anos que tinha lido a maior parte desses títulos. Eu parara de ler aos poucos, do jeito como alguém sara ou morre. Tentei manter meu personagem livresco. Entrei em clubes literários que nunca frequentei. Pedi na biblioteca um livro que todo mundo estava lendo e o devolvi sem ser lido.

Eu ainda adorava a ideia de ler

Sempre que achava uma livraria, ficava horas entre as estantes, como se reencontrasse velhos amigos, pegando livros que já lera e comprando novos. Mas para mim era claro: estava me tornando alguém que eu não conhecia.

David foi meu primeiro namorado pela internet. Seu perfil dizia que gostava de ler, e lhe perguntei sobre o último livro. O rosto dele se iluminou. David lia muito mais do que eu, um ou dois livros por semana. Parecíamos um casal improvável: uma negra de 1,58 metro e mãe caribenha e ele, branco, 1,90 metro, de Ohio. Mas, quando nos conhecemos melhor, a fé nos livros e o amor por eles cobriram nossas lacunas.

Quando comparamos nossa biblioteca, só tínhamos quatro livros em comum. David preferia história e não ficção, e eu era atraída por ficcionistas negros e narrativas de imigrantes.

No sétimo encontro, David e eu visitamos a biblioteca.

– Tenho um jogo – disse ele, tirando da bolsa duas canetas e adesivos
Post-it. – Vamos procurar livros que já lemos e deixar neles resenhas para o próximo leitor.

Perambulamos uma hora pelos corredores. No fim, nos sentamos no chão, no meio da poesia, e li algumas para ele. David escutou, perguntando:

– De que você gosta nessa aí?

Naquela primavera, num piquenique ao ar livre, eu disse:

– Se eu lhe contar uma coisa, você não me condena?

David ergueu as sobrancelhas.

– Só li um livro este ano.

– Mas estamos em junho – disse ele.

– Eu sei.

– Mas você gosta de livros. Gosta de livrarias. Gosta de bibliotecas.

– Vai terminar comigo?

– Não, mas… leia um livro!

Tsundoku

Eu tinha dolorosa consciência da hipocrisia gritante de minha vida. Defendia as virtudes das livrarias na era das compras pela internet e comprava livros sempre que podia, mas dificilmente os lia. Eles ficavam sobre qualquer superfície, até parecer que minha casa usava livros como as pessoas usam roupas. Eles se empilhavam nas cadeiras, caíam dos braços do sofá.

O idioma japonês tem uma palavra para isso: tsundoku. O ato de comprar livros que não são lidos.

As minhas prateleiras têm duas fileiras de livros, uma interna, outra externa. Em volta da estante, há pilhas com diversas categorias: Livros que li. Livros que quero ler. Livros que comecei mas não terminei porque não gostei. Livros que comecei e adorei mas não consegui continuar a leitura por causa do conteúdo sexual ou violento.

Na vez seguinte que fui a um sebo, comprei cinco livros para mim e dois para David. A sua cobrança de “ler um livro” ecoava em minha cabeça. Um dia peguei um que comprara pelo título poético. Tive dificuldade de mergulhar nele. O narrador era um velho, só que suas palavras mais pareciam o que uma mocinha achava que um velho diria. Sempre que ficava tentada a desistir, pensava em David.

Forcei-me a ler os dois primeiros capítulos e descobri um novo narrador no terceiro. Adorei a alternância de pontos de vista. Levei o livro para o trabalho. Li no almoço e na caminhada de volta para casa, às vezes erguendo os olhos para não tropeçar em desconhecidos e em irregularidades no concreto.

– Como foi seu dia? – dizia a mensagem de David.

– Bom. Um pouco cansada – respondi. – Fiquei acordada até tarde para terminar o livro.

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Quis que soasse casual, mas estava orgulhosa. Na última vez que virara a noite para ler eu tinha 12 anos e o livro era Mulherzinhas.

Eu sentia que ele me empurrava para ser a pessoa que eu era antes, a pessoa que eu queria ser. Sempre que ele falava de seu livro atual de não ficção sobre a ascensão do Vale do Silício ou filósofos ambientais, eu lhe falava de ficção, de homens que deixaram seu país escondidos em caixas para depois sair e se transformar em pássaros. Eu lhe lembrava que, às vezes, a única maneira de explicar o mundo em que vivemos é inventando tudo.

Certa vez perguntei a David de que ele gostava em mim.

Ele disse: “Você me torna menos cético. Com você, vejo o mundo como um lugar cheio de maravilhas.”

David sugeriu que visitássemos a biblioteca outra vez. Perguntou se eu me lembrava do jogo que tínhamos feito na primeira visita.

“Lembro”, respondi.

Ele pegou um livro na estante, se apoiou no joelho e o abriu.

Lá dentro, o Post-it dizia: “Karla, sempre foi você. Quer se casar comigo?”

Seu pedido descansou entre as páginas de A princesa rebelde por mais de um ano.

“Quero”, respondi. “Quero me casar com você.”

E nos abraçamos na seção de ficção, cercados por histórias de outras pessoas, para começar a nossa.

POR KARLA MARIE-ROSE DERUS adaptado do New York Times

THE NEW YORK TIMES (22 DE FEVEREIRO DE 2019), © 2019 DE THE NEW YORK TIMES, NYTIMES.COM.