O naufrágio em plena terra (firme?)

Uma mulher caminha pela rua com a sensação de estar à deriva em um oceano. A sensação é tão forte que um acidente se transforma em naufrágio.

Claudia Nina | 17 de Janeiro de 2021 às 10:00

Neydtstock/iStock -

“Emprestamos à arvore nossas paixões,
nossos desejos ou nossa melancolia.”

Baudelaire

A tarde de sol era para ser uma alegria, mas não. Era dia de aula de francês, o que deveria ser bom – só que nenhuma euforia acontecia naquela alma. Os dias pareciam da mesma cor – cinza-chumbo – e nada era capaz de mudar o humor. Nada que viesse de fora, porque o mecanismo que a trancou dentro dela só funcionava abrindo de dentro para fora; definitivamente não sabia o que fazer.

Andava naquela tarde de sol-susto (como o lugar era sempre nublado, o sol de repente parecia um sem-lugar) ao longo de uma das ruas que margeavam os muitos canais da cidade. Tinha acabado a aula de francês e voltava com as mãos escondidas no bolso do casacão. Era um frio médio. Para ela, um frio nervoso. Sem o manejo dos braços, parecia cambalear com as botas grossas de neve – a neve ausente, que falta fazia a neve que povoava os cenários. A neve onde as crianças brincam.

As ruas eram um deserto. A água por baixo das ruas falsas a desnorteava.

Até que o desconforto com a paisagem abriu uma estranha visão mental: estava no meio de um oceano, sozinha, à deriva. O delírio era tão real que podia sentir o cheiro da água salgada e não mais o cheiro das águas do canal ao qual já devia estar acostumada, mas que ainda lhe causava náusea. O que fazer? Continuar andando mesmo que a sensação fosse a de não poder nadar, sem forças? Como boiar à espera de socorro se estava tão pesada, cansada, sem confiança no horizonte?

Seguiu andando sem sentir o chão. Que sensação horrível a de não estar onde se está. Seguiu adiante até o final da rua, onde havia um cruzamento. A água do canal margeando a rua mesmo depois da ponte. Seguiu, inundada de tristeza.

Quando chegou ao cruzamento, sentiu que a sensação de deriva tinha passado. Que alívio, pensou. Só que, ao fazer a travessia, havia o bonde percorrendo os trilhos daquela rua. Ela não viu, não ouviu sua aproximação. Ouviu? Não se sabe.

Mas houve o choque. Ela caiu, espatifada. Um naufrágio em plena terra – firme?

POR CLAUDIA NINA – claudia.nina@selecoes.com.br

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