A história da uva contada por ela mesma

De fruto a uma das bebidas mais importantes do mundo, a uva tem muita história pra contar. Conheça e se surpreenda com a história da uva!

Douglas Ferreira | 6 de Dezembro de 2019 às 14:00

Waldemar Seehagen/iStock -

Em 2017, uma única frase reverberou pela internet, passando pelas mídias sociais e por blogs antenados:

“Fizeram cirurgia numa uva.”

E fizeram mesmo! Um vídeo mostrava um robô minúsculo fazendo incisões delicadas em minha pele fina e roxa antes de puxar a camada translúcida
para revelar minha polpa suculenta e verde-amarelada.

O vídeo pretendia demonstrar a precisão da ferramenta cirúrgica, mas o absurdo total da frase “Fizeram cirurgia numa uva” atraiu milhões, e me tornei um meme maluco da internet.

Uma fruta divina para beber

É claro que minha popularidade é muito anterior a isso. Afinal, também
me transformo em vinho! Habitante da América do Norte desde antes dos
primeiros colonos europeus, minhas variedades nativas não são uma boa
base para o vinho, mas meus cachos da Ásia e da Europa eram, com certeza.
Os primeiros seres humanos de lá aprenderam que, nas condições certas, eu fermentava bem; bastava colher meus cachos, esmagá-los até obter uma polpa e deixar o tempo passar. (Só depois a microbiologia moderna explicou que, em minha casca, há a levedura necessária para a fermentação.) Aí, os romanos espalharam a vinicultura em praticamente todas as terras que conquistaram.Talvez Júlio César devesse ter dito veni, vidi, vini.

Uma época difícil para mim

Mas todo esse mundo do vinho quase se perdeu na década de 1800. Os primeiros sinais de alerta começaram com um sujeito chamado Thomas Jefferson. Depois de trabalhar na Europa numa missão diplomática, Jefferson se interessou muito pelos vinhos franceses e resolveu ver se conseguiria produzir um bom vinho em sua propriedade de Monticello, no estado americano da Virgínia. Ele plantou parreiras europeias em seus
campos e as viu murchar e morrer. Embora ele não soubesse, pragas nativas do solo americano criaram o caos naquelas raízes europeias.

De forma mais desastrosa, europeus curiosos remeteram para suas praias parreiras americanas a fim de fazer suas experiências. Essas parreiras levaram insetos parecidos com pulgões chamados filoxera – provavelmente
os mesmos culpados pelo fracasso do empreendimento vinícola de Jefferson. Até o fim do século 19, a praga que Jefferson encontrou destruiu até 90% dos vinhedos europeus, arruinando uma tradição agrícola secular.

Os cientistas que acabaram descobrindo como salvar a indústria vinícola
da Europa acrescentaram mais uma virada à minha história transatlântica.
A solução foi enxertar os varietais do Velho Mundo em, vejam só, parreiras americanas resistentes à filoxera. Isso mesmo: quase todos os grandes vinhos europeus de hoje crescem em boas raízes americanas.

Bebida alcóolica ou suco? Não importa, tem para todo mundo!

Enquanto os europeus enfrentavam a perda de seus vinhedos, um sacerdote, médico e abstêmio de Vineland, em Nova Jersey, Thomas Bramwell Welch, intolerante com o pendor americano pelo álcool, decidiu impedir que meu suco fermentasse e virasse vinho. Como médico, o Dr. Welch conhecia o trabalho de Louis Pasteur com a pasteurização para tornar o leite seguro para beber. Ele decidiu tentar a mesma coisa com meu
suco, que aqueceu para matar as leveduras que o transformariam em álcool. Com isso, nasceu o suco de uva estável nas prateleiras.

Conhecido como “vinho não fermentado”, o produto do Dr. Welch foi lançado na Feira Mundial de 1893, e os Estados Unidos, a caminho da Lei Seca, se viciaram. Em 1913, o secretário de Estado William Jennings Bryan serviu o produto em vez de vinho num evento formal e diplomático (e aposto que chatíssimo). Adultos sóbrios e crianças tinham uma nova bebida doce para amar (e, em consequência, mais um monte de cáries nos dentes; é
provável que o Dr. Welch, que ironicamente também era dentista, não tenha previsto esse infeliz efeito colateral).

Tem para todos os gostos…

Apesar de você talvez não ser assim tão gregário, os seres humanos também consideram que é um prazer me comer. Até minhas variedades mais convencionais, como a Thompson verde sem sementes e a Flame roxa sem sementes, podem ser alegremente estouradas aos punhados na boca ou postas numa tábua de queijos para amenizar um azul de sabor forte. Se sua preocupação é a saúde, você pode escolher as variedades de casca mais escura: seus pigmentos são a fonte mais rica do mundo botânico de resveratrol, um antioxidante ao qual atribuem propriedades antienvelhecimento (embora, francamente, em geral com exagero).

É claro que também venho como um petisco seco produzido em massa, como sabem gerações de crianças. Quem viveu os anos 1980 se lembra daquelas caixinhas vermelhas de passas. Talvez você também se lembre de meu grande momento da cultura pop: anúncios de TV mostrando a animação de massinha das California Raisins com bonequinhos meus
dançando ao som de “I Heard it Through the Grapevine” (ao pé da letra, “ouvi através da parreira”, ou seja, “ouvi um boato”). A gravação do sucesso de Marvin Gaye pelo “grupo” The Raisins (“As uvas-passas”) chegou à lista de 100 maiores sucessos da revista Billboard.

Será o fim da jovem uva passa?

Hoje, a indústria de passas está murchando, e o número de hectares plantados com uvas Thompson sem sementes, variedade da qual se produzem as passas, caiu à metade nos últimos 19 anos. Para combater
o problema do sumiço daquelas caixinhas vermelhas de SunMaid, a empresa, que domina cerca de 40% do mercado de passas, contratou recentemente novos administradores, criou um novo produto de passas azedas e lançou uma campanha publicitária aproveitando a saudade desse petisco clássico. Francamente? Se eu não vencer na cultura pop, como meme pronto que já sou, não sei onde vencerei.

POR KATE LOWENSTEIN E DANIEL GRITZER

Atualmente, Kate Lowenstein é editora de saúde da revista Vice; Daniel Gritzer é diretor culinário do site de cozinha Serious Eats.