Conheça a história do maior golpe de loteria da história americana

Entenda como os investigadores descobriram que o golpista Eddie Tipton fraudou pelo menos seis sorteios de loterias em cinco estados diferentes.

Douglas Ferreira | 29 de Outubro de 2019 às 14:00

Francesco Francavilla -

O vídeo era granulado, mas mostrava o suficiente para solucionar o maior golpe de loteria da história americana. Um homem robusto entra numa loja QuikTrip na estrada Interestadual 80, em Des Moines, no estado de Iowa, dois dias antes do Natal de 2010. O capuz do moletom encobre o rosto. Ele pega um refrigerante e dois cachorros-quentes.

“Olá!”, diz o caixa alegremente.

De cabeça baixa, o homem responde com voz grave e arrastada: “Olááá.” Eles trocam mais algumas palavras. O homem tira do bolso dois pedaços de papel. O caixa os passa pelo terminal da loteria e entrega o troco. Lá fora, o homem tira o capuz, entra na picape e vai embora.

Os pedaços de papel eram volantes da Hot Lotto, uma loteria de números disponível em Washington e em 14 estados do país. O jogador (ou o computador do jogo) escolhe cinco números e mais um sexto, chamado de Hot Ball. Quem acertar os seis números ganha um prêmio que varia de acordo com quantos jogos foram feitos. Na época do vídeo, o prêmio se aproximava dos 10 milhões de dólares. A probabilidade declarada de ganhar era de 1 em 10.939.383.

O estopim de uma investigação que descobriria o maior golpe de loteria da história americana

Seis dias depois, em 29 de dezembro, os números da Hot Lotto foram sorteados: 3, 12, 16, 26, 33, 11. No dia seguinte, a Loteria de Iowa anunciou que uma loja QuikTrip de Des Moines tinha vendido o bilhete premiado. Mas ninguém apareceu para receber o prêmio de 16,5 milhões de dólares.

Dali a um mês, a Loteria de Iowa deu uma entrevista coletiva à imprensa para avisar que o dinheiro ainda não fora reclamado. Outro lembrete público foi feito três meses depois do sorteio; o terceiro, seis meses depois; o quarto, aos nove meses. Os ganhadores tinham um ano para buscar o dinheiro.

Em novembro de 2011, um advogado canadense chamado Philip Johnston ligou e deu o número de série correto do volante vencedor. Mas, quando lhe perguntaram que roupa usava quando fez o jogo, sua descrição (paletó esporte e calças de flanela cinzenta) não combinava com o vídeo da QuikTrip. Então, num telefonema subsequente, o homem admitiu que contara uma “mentirinha” e disse que ajudava um cliente que não queria ser identificado.

Isso ia contra as regras da Loteria de Iowa, que exige que a identidade dos vencedores seja pública. Os funcionários da Loteria ficaram desconfiados.

O anonimato do vencedor valia 16,5 milhões de dólares?

Exatamente um ano depois do sorteio, menos de duas horas antes do prazo final das 16 horas, representantes de um escritório de advocacia de Des Moines apareceram na sede da Loteria com o bilhete vencedor. A empresa reclamava o prêmio em nome de um fundo cujo beneficiário era uma empresa de Belize. Seu presidente era Philip Johnston, o homem que dissera usar um paletó esporte para fazer o jogo.

“Aquilo cheirava mal por todos os poros”, diz Terry Rich, executivo da Loteria de Iowa. Eles suspenderam o prêmio enquanto o procurador geral do estado iniciava uma investigação, que não deu em nada.

Dois anos depois, um advogado distrital chamado Rob Sand herdou o arrastado caso da loteria. Na faculdade, Sand estudara Computação antes de fazer Direito, e sua especialidade eram os crimes do colarinho-branco. Mas aquele caso o deixou perplexo. A melhor prova era o vídeo granulado de um homem de capuz, e ele decidiu entregar a gravação à mídia, na esperança de que trouxesse pistas – e trouxe.

A primeira veio de um funcionário da Loteria do Maine que reconheceu a voz do vídeo como a de um homem que fizera uma auditoria de segurança em seus escritórios. Uma analista de sistemas da Loteria de Iowa também reconheceu a voz: pertencia a Eddie Tipton, com quem trabalhara durante anos. Eddie era diretor de segurança de informações da Associação Multiestadual de Loterias, com sede em Des Moines. Entre os jogos administrados pela associação estava a Hot Lotto.

A vida quase comum de Eddie Tipton

Eddie fazia boa figura no escritório. Escrevia software, cuidava do firewall das redes e revisava a segurança dos jogos em mais de 30 estados. Sua vida girava em torno do emprego; às vezes, ficava em sua mesa até as 11 da noite. Era simpático e carinhoso com os colegas.

Mas ele também era meio paranoico. Raramente pagava com cartões de crédito, com medo de que rastreassem sua identidade. Em particular, Eddie dizia aos amigos que se sentia só e, mais do que tudo, queria uma família. Construiu uma casa de 445 m² e 540 mil dólares, com cinco quartos e um home theater estilo anfiteatro. Os amigos se perguntavam por que um homem solteiro precisava de uma casa tão grande e como a teria construído com seu salário. Eddie dizia que investiu todas as suas economias na casa na esperança de enchê-la com uma esposa e filhos. Mas a parceira certa nunca apareceu.

Entre os amigos de Eddie havia um colega chamado Jason Maher. Eles passavam horas jogando online. Quando viu o vídeo da Hot Lotto liberado por Sand, Maher imediatamente reconheceu aquela voz grave, mas não quis acreditar.

Então ele carregou o arquivo no software de áudio, removeu o ruído branco e isolou a voz. Depois, pegou a filmagem das câmeras de segurança de sua casa – Eddie o visitara na noite anterior – e comparou as vozes. “Foi uma correspondência total e completa”, disse Maher. No dia seguinte, ele foi à QuikTrip e mediu as dimensões dos ladrilhos do piso, a altura das prateleiras, a distância entre a porta e o caixa. Usou os resultados para comparar o tamanho da mão e do pé e a altura do homem no vídeo com os do amigo. Maher queria ser capaz de dizer à polícia que não era seu amigo Eddie.

A prisão de Eddie Tipton

Em janeiro de 2015, investigadores estaduais apareceram na sala de Eddie. Ele foi preso e acusado de dois crimes de fraude. Seis meses depois, numa manhã quente de julho, Rob Sand estava diante do júri no tribunal do condado de Polk. “Esta é a história clássica de um serviço interno”, começou. “Um homem que, em virtude do emprego, não pode jogar nem ganhar na loteria compra um bilhete, ganha e passa o bilhete para ser cobrado por alguém sem ligação com ele.”

A promotoria sabia que Eddie comprara o bilhete vencedor; o vídeo deixava isso claríssimo. Registros do celular mostraram que Eddie estava na cidade naquele dia. Os investigadores acreditavam que ele fraudara a loteria. Mas como?

Com base em sua pesquisa, Sand teorizou que, antes do sorteio da Hot Lotto, Eddie conseguira acesso a um dos dois computadores que selecionam os números e inserira um pen drive com instruções codificadas. O software clandestino, chamado de rootkit, permitiu a Eddie restringir o grupo de números que poderia ganhar e depois se apagou.

O promotor disse aos membros do júri que não precisavam entender a tecnologia para condenar Eddie. Só teriam de perceber a coincidência quase impossível de que o chefe de segurança da loteria acertasse os números vencedores. Depois de deliberar durante cinco horas, o júri considerou Eddie culpado. Ele recorreu. Então, o caso sofreu uma virada estranhíssima.

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Certa manhã, alguns meses depois do primeiro julgamento, o telefone tocou no gabinete de Sand. Era uma ligação do Texas, onde Eddie passara a infância. A pessoa que ligava disse que vira uma reportagem no jornal sobre a condenação de Eddie. “Vocês já sabem”, perguntou o denunciante, “que Tommy Tipton, irmão de Eddie, ganhou na loteria uns dez anos atrás?”

Sand entrou em contato com Richard Rennison, agente especial do escritório do FBI em Texas City. Rennison disse que se lembrava do caso: em 2006, um homem chamado Tom Bargas entrara em contato com a polícia com uma história suspeita. Ele era dono de 44 barraquinhas de venda de fogos de artifício. Duas vezes por ano, no Quatro de Julho e no Ano-Novo, ele recebia uma quantia imensa. Um juiz de paz conhecido dele lhe telefonou perto do Ano-Novo e disse: “Tenho meio milhão em dinheiro e queria trocar por suas notas miúdas.”

O que um juiz de paz estava fazendo com tanto dinheiro vivo?, pensou Bargas. Desconfiado, ele chamou a polícia, que chamou o FBI. Logo, agentes escutaram quando Bargas se encontrou com Tommy Tipton, o juiz de paz. Tommy trazia uma pasta com 450 mil dólares em dinheiro, ainda com as cintas do Federal Reserve, o banco central americano, e trocou 100 mil pelas notas usadas de Bargas. Então, o FBI investigou o número de série das notas novas.

Alguns meses depois, Rennison foi conversar com Tommy, que disse que tinha ganhado na loteria, mas estava brigado com a mulher e não queria que ela soubesse. Um amigo recebera os 568.990 dólares do prêmio em troca de 10% do total. Na época, tudo parecera fazer sentido, e o caso Tommy Tipton foi encerrado. Agora Sand desconfiava de que havia outros prêmios ilícitos.

O passado finalmente vem à tona

Realmente: em 29 de dezembro de 2007, um prêmio de 783.257,77 dólares de um sorteio da loteria do estado de Wisconsin fora recebido por um homem chamado Robert Rhodes – o melhor amigo de Eddie Tipton. Em 23 de novembro de 2011, Kyle Conn, de Hemphill, Texas, ganhou 644.478 dólares na loteria do estado de Oklahoma. Sand viu que Tommy Tipton tinha no Facebook três amigos de sobrenome Conn. Ele pegou os números de telefone e os cruzou com os registros do celular de Tommy. Mais uma coincidência.

Dois bilhetes vencedores da loteria do estado do Kansas, com prêmio de 15.402 dólares, foram comprados em 23 de dezembro de 2010, o mesmo dia em que Eddie fez o jogo em Iowa. Os registros do celular indicavam que ele estava dirigindo pelo estado a caminho do Texas para passar as festas. Um dos bilhetes vencedores foi para um texano chamado Christopher McCoulskey; o outro, para uma natural de Iowa chamada Amy Warrick. Os dois eram amigos de Eddie.

Um dia Sand e um investigador bateram à porta de Warrick. Ela disse que Eddie contara que não poderia receber o prêmio da loteria por causa do emprego. E dissera que, se fosse receber por ele, ela poderia ficar com parte do dinheiro como presente de noivado. Agora os investigadores de Iowa tinham seis prêmios de loteria que imaginavam fazer parte de um golpe maior.

Mas a pergunta era: como funcionava o esquema?

Felizmente, os computadores usados em 2007 na loteria de Wisconsin estavam guardados. Sean McLinden, especialista em computação, desenterrou códigos maliciosos. Não estavam escondidos; só era preciso saber o que procurar.

Segundo o vice-advogado geral de Wisconsin, David Maas, “foi como achar a arma do crime”.

Eddie Tipton se declarou culpado, assim como seu irmão Tommy. Agora, ameaçado de pegar dez anos de cadeia, Eddie concordou em revelar o segredo. Ele explicou que o esquema todo começara de forma bastante inocente no dia em que passou por um dos contadores da Associação Multiestadual de Loterias.

– Ei, você pôs seus números secretos aí dentro? – perguntou o contador para implicar com Eddie.

– Como assim?

– Ora, você sabe, você pode escolher os números sorteados. Afinal, foi você quem escreveu o software.

“Assim uma sementinha foi plantada”, disse Eddie, “e, num período de pouco trabalho, experimentei.”

A descoberta do método (quase) infalível

Para assegurar que os números vencedores fossem gerados aleatoriamente, o computador fazia a leitura de um contador Geiger que media a radiação no ar circundante. A leitura era inserida num algoritmo que calculava os números. O plano de Eddie foi limitar o máximo possível o processo de seleção aleatória. Seu código só era rodado quando o próximo sorteio cumprisse um conjunto estrito de circunstâncias. Tinha de ser numa noite de quarta ou sábado e numa dessas três datas de anos não bissextos: o 147º, o 327º ou o 363º dias do ano. Os investigadores notaram que, geralmente, essas datas caíam perto de feriados, quando Eddie costumava viajar.

Se esses critérios fossem satisfeitos, o gerador de números aleatórios seguia um caminho diferente, que não utilizava a leitura do contador Geiger. Em vez disso, o algoritmo usava um número predeterminado, que restringia o reservatório de possíveis números vencedores a um conjunto de opções muito menor e previsível: em vez de milhões de combinações possíveis, só haveria algumas centenas.

Na noite anterior à primeira loteria que fraudou, um prêmio de 4,8 milhões de dólares no Colorado, Eddie ficou até tarde no escritório. Pôs um computador de teste para rodar o programa várias vezes e escreveu todos os possíveis números vencedores num bloco de papel.

No dia seguinte, 23 de novembro de 2005, ele entregou o bloco ao irmão, que faria uma viagem ao Colorado. “Esses números têm uma boa chance de ganhar, com base em minha análise”, disse ele. “Jogue. Jogue todos eles.”

O desfecho da história do maior golpe de loteria da história americana

Em 2017, Eddie Tipton, então com 54 anos, subiu a escada do tribunal do condado de Polk. As mãos estavam enfiadas no bolso, a cabeça baixa. Ele aceitara se declarar culpado de ter criado o imenso golpe da loteria em troca de redução da pena; a acusação era de conduta criminosa ininterrupta, parte de um pacote que deu ao irmão apenas 75 dias de prisão. Eddie estava lá para ouvir sua pena.

Nos depoimentos aos promotores, ele se apresentou como um Robin Hood que furtava da loteria para ajudar quem precisava: o irmão, que tinha cinco filhas; a amiga que acabara de ficar noiva. “Eu não precisava do dinheiro”, disse Eddie. O juiz observou que Eddie parecia racionalizar suas ações: ele não achava que fossem necessariamente ilegais e só se aproveitava de um furo do sistema, como contar cartas num cassino.

O juiz condenou Eddie a 25 anos de prisão. A devolução dele e de Tommy às várias loterias estaduais chegou a 2,2 milhões de dólares, embora, segundo o advogado, Eddie só tivesse embolsado cerca de 350 mil.

Sand espera que Eddie obtenha liberdade condicional em sete anos. Ao refletir sobre o caso, o promotor diz que sentiu uma profunda satisfação intelectual ao resolver o enigma.

 POR REID FORGRAVE da The New York Times Magazine

New York Times Magazine (3 de maio de 2018), © 2018 de New York Times Co., nytimes.com.