A surpreendente história de Precious, a 6ª pessoa do mundo a sobreviver à raiva

Precious Reynolds, da Califórnia, é apenas a sexta pessoa do mundo a ter sobrevivido à raiva, e a que se recuperou mais rapidamente. Confira essa história!

Redação | 1 de Maio de 2019 às 14:00

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Sinuosas estradas campestres sobem pelas montanhas e florestas do norte da Califórnia. Willow Creek, com dois mil habitantes, se localiza ali, no condado de Humboldt. Além de Willow Creek, há um vale. No fundo desse vale corre um rio, e a quase um quilômetro dele se eleva uma solitária casa de madeira pintada de azul com uma cerquinha branca. Quatro cachorros saem lá de dentro, latindo zangados. Uma menina magra e esguia, de cabelo preto sedoso e olhos amendoados, corre atrás deles. “Silêncio! Calados! Comportem-se!”, ralha ao abrir o portão.

A menina é Precious Reynolds. Ela, três irmãos e um primo moram aqui com os avós Jack e Shirlee Roby. A avó descende de índios da tribo Wiyot. Jack, 76 anos, cuida da casa enquanto Shirlee, 61, ganha a vida como operária nas estradas da Califórnia. Os pais das crianças estão ausentes da vida delas por uma ou outra razão. A pobreza da família é visível por todos os lados, tornando ainda mais comovente o nome de Precious – Preciosa.

Em abril de 2011, Precious, na época com 8 anos, decidiu dar uma olhada mais de perto num gato sem dono que corria pelo pátio da escola, em Willow Creek. Quando ela estendeu a mão para fazer carinho, o animal a mordeu. Embora sangrasse um pouco, o ferimento não passava de um arranhão no dedo médio da mão esquerda. A professora a mandou à diretoria, onde uma secretária lhe pôs um curativo.

É assim que começam todas as histórias de raiva: com um animal que morde alguém sem razão aparente e, com isso, lhe transmite pela saliva uma infecção que logo se espalha pelo restante do corpo. O vírus da raiva tem o formato de uma bala de revólver. Os projéteis cilíndricos feitos de glicoproteína e lipídios levam uma carga letal de material genético. Ao contrário de muitos outros vírus, ele não se espalha pela corrente sanguínea; em vez disso, esgueira-se pelo sistema nervoso num ritmo de dois a dez centímetros por dia até chegar ao cérebro. Lá, provoca uma inflamação para a qual não há cura.

Existe uma vacina para quem for contaminado pelo vírus. Mas um pesadelo de terror e agonia aguarda quem perder o período propício de alguns dias depois da mordida. Quando vem, a morte parece quase uma libertação.

O pesadelo de Precious começou três semanas depois do encontro com o gato. Na hora de dormir, a criança mais nova da casa disse a Jack e a Shirlee que Precious vomitara. No dia seguinte, ela ainda estava passando mal, e Jack a levou ao médico, que desconfiou de apendicite e recomendou que a conduzissem ao Hospital Comunitário de Mad River, a 40 minutos de carro. A equipe de lá achou que, provavelmente, era uma gripe, e Jack retornou com ela para casa. Quarenta e oito horas depois, no meio da noite, Precious apareceu na cama dos avós com dor na cabeça, no pescoço e nas costas. Jack a levou ao hospital, onde lhe deram analgésicos e a mandaram para casa. Naquela noite, ela nem conseguia manter a cabeça erguida, e Shirlee a conduziu ao hospital mais uma vez.

Shirlee acomodou Precious na caminhonete e foi para o hospital. “Isso não é gripe!”, disse aos médicos.

“Ela estava no meu colo como uma boneca de pano”, conta Shirlee com a sua voz clara e profunda. A mínima gota d’água bastava para fazê-la tossir, vomitar e afastar o copo, embora sentisse uma sede terrível. O horror à água é um sintoma exclusivo da raiva, que por isso é chamada também de hidrofobia.

Shirlee acomodou Precious na caminhonete e voltou com ela ao hospital.

“Isso não é nenhuma droga de gripe!”, disse aos médicos, e exigiu que fizessem outro exame na neta. O que encontraram foi uma menininha cujo estado piorava a cada instante. Precious foi levada de ambulância para o aeroporto de McKinleyville e depois, de avião, para Sacramento, a 335 quilômetros.

Na unidade de tratamento intensivo pediátrico do Hospital Infantil Davis, da Universidade da Califórnia, uma equipe de pediatras e médicos intensivistas começou a trabalhar contra o relógio para descobrir o que lentamente matava Precious. Vírus de Epstein-Barr, hepatite B e C, febre tifoide, poliomielite, doença de Lyme e tifo foram todos descartados como hipótese.

“Paralisia, hidrofobia, moradia rural: veja se não é raiva!”

A Dra. Jean Wiedeman, médica-chefe de doenças infecciosas, telefonou para especialistas e examinou várias publicações. Finalmente, falou com uma especialista das superintendências de saúde dos Estados Unidos que trabalhava como médica e veterinária. Foi ela quem solucionou o mistério. Paralisia, hidrofobia, moradia rural: veja se não é raiva! Cinco dias depois de Precious ser internada na UTI, eles por fim tinham o diagnóstico. Quanto ao tratamento, o máximo que a clínica moderna podia lhe oferecer era “conforto”: uma morte sem sofrimento.

Foi só no verão de 1885 que finalmente se descobriu um meio de prevenir a raiva. Louis Pasteur conseguiu produzir uma vacina com a medula espinhal desidratada de um coelho contaminado, que usou para salvar a vida de um menino de 9 anos pouco depois de receber 14 mordidas de um cão raivoso. Foi um grande avanço para a ciência da microbiologia.

Mas desde então houve pouco progresso no tratamento da doença. Os médicos tinham ouvido falar de um tratamento experimental testado em 2004 pelo Dr. Rodney Willoughby Jr., pediatra de Milwaukee. Jeanna Giese, 15 anos, que se contaminara ao ser arranhada por um morcego, foi a primeira paciente de raiva que o médico já vira.

Ele trabalhou sozinho e, em menos de um dia, desenvolveu a hipótese de que o sistema imunológico humano seria capaz de combater o vírus da raiva se tivesse mais tempo. Assim, a paciente foi posta em coma induzido para evitar que o cérebro provocasse avarias fatais no sistema nervoso, enquanto a defesa natural do corpo combatia o vírus.

A ideia deu certo. Sete dias depois, Jeanna tinha grande quantidade de anticorpos na corrente sanguínea. Mais tarde, foi tirada do coma, mas levou dois anos para se recuperar. Desde então, o “protocolo de Milwaukee” foi usado em 50 ocasiões. A vida de outras cinco pessoas foi salva, embora com sequelas neurológicas.

Precious foi posta em coma e mantida viva por um respirador mecânico, embora parecesse mais morta que viva.

Jack e Shirlee deram o consentimento para tentar o protocolo de Milwaukee no dia em que a raiva foi diagnosticada. Precious foi posta em coma e mantida viva com um respirador mecânico, embora parecesse mais morta que viva, quase invisível debaixo da pilha de tubos e cabos no seu leito de hospital. Shirlee ficou ao lado da neta durante o dia e William Reynolds, o pai da menina, à noite.

No 14º dia, os médicos começaram a preparar Shirlee para o pior. Mas ela se empertigava e se plantava diante de qualquer médico ou enfermeira que ousasse expor as dúvidas deles. “Se não consegue ter uma atitude positiva, não queremos você aqui.” Shirlee levou para a unidade de emergência um patuá indígena e o pôs no pescoço de Precious.

A partir do 16º dia, o sistema imunológico da menina começou a reagir.

Depois de 53 dias no hospital, ela se levantou e andou.

Precious é apenas a sexta pessoa do mundo a ter sobrevivido à raiva, e a que se recuperou mais rapidamente. Shirlee jura que tudo se deve ao patuá.

Precious Reynolds no hospital Davis Children’s em Sacramento.