Em busca dos matadores de tigre

Ele estava por ali, em algum lugar no alto do morro, o homem que Karl Ammann fora visitar. Logo anoiteceria. A floresta estava cheia de sombras e sons.

Redação | 1 de Junho de 2020 às 01:01

TERRENCE MCCOY/THE WASHINGTON POST VIA GETTY IMAGES -

Ele estava por ali, em algum lugar no alto do morro, o homem que Karl Ammann fora visitar. Logo anoiteceria. A floresta estava cheia de sombras e sons. Ammann atravessara o Laos para chegar a Tha Bak, uma remota aldeia fluvial, a fim de confrontar a pessoa que, segundo acreditava, mais matara tigres no país. A distância, ele ouvia dezenas de tigres rugindo.

Durante quase cinco anos, o suíço Ammann, de 71 anos, conservacionista que combate o tráfico, rastreou Nikhom Keovised. Pôs câmeras ocultas dentro daquela que já foi a maior fazenda de criação de tigres do Sudeste Asiático, uma operação ilegal que cria tigres com um único fim: o abatedouro. E escutou o homem que executava o abate descrevê-lo com as próprias palavras: “Use o anestésico”, disse Keovised. “Depois, é só cortar o pescoço.” Em seguida, “arranque a pele”.

Agora, Keovised abrira ali em Tha Bak um empreendimento que seu chefe, considerado um dos maiores traficantes de animais selvagens do país, descrevia como um zoológico, mas que Ammann desconfiava ser uma fachada para vender tigres.

Ammann conhecia os riscos. Estava no país sem permissão de investigar suas práticas com animais selvagens. Estava desarmado. Keovised e seu chefe nunca tinham sido acusados de nada, muito menos presos. Se descoberto, o equipamento que Ammann levava consigo – o drone, as câmeras ocultas, as imagens de satélite das fazendas de criação de tigres do país – negaria na mesma hora a história de que era turista.

Mas ele já sentia a conhecida intensidade. Ela o levou a correr dúzias de riscos, a investigar com recursos próprios, a ser empurrado para a periferia da comunidade conservacionista e até amigos seus o descreviam como obsessivo, para não dizer meio maluco. Ele não conseguia parar. Os responsáveis teriam de se explicar.

Durante dez dias, no fim de 2018, fui com Ammann numa viagem secreta para determinar se o Laos, um eixo global do tráfico de animais selvagens, cumpria as promessas feitas desde 2016 para eliminar esse tipo de comércio. Agora tínhamos chegado a esse morro, onde, no alto, os tigres começavam a fazer mais barulho.

Estavam com fome, anunciou Ammann. Logo seria a hora de alimentá-los. Ele pendurou a câmera no ombro e começou a subir o morro, em busca dos tigres e de seu carcereiro.

Correr riscos

O tigre, cuja população cativa hoje é muito maior do que o número de animais em ambiente selvagem, está prestes a se tornar uma mercadoria totalmente industrializada. Nos últimos 100 anos, mais ou menos, a população selvagem despencou de estimados 100 mil indivíduos para menos de  4 mil, enquanto o número em cativeiro explodiu para mais de 12.500.

Em nenhum outro lugar esse processo foi mais completo do que nas fazendas de criação de tigres, onde, depois de criados, os animais são abatidos e as partes de seu corpo, vendidas por dezenas de milhares de dólares. E em nenhum outro lugar essas fazendas funcionaram com mais impunidade do que no Laos, país cujos próprios tigres selvagens foram quase todos mortos. Ammann foi uma das poucas pessoas que viram o interior das fazendas do país.

Quando conversei com ele pela primeira vez, em junho de 2018, esperava encontrar alguém não necessariamente otimista, mas que pelo menos tivesse esperança. Desde 2016, as autoridades internacionais e alguns conservacionistas aplaudiram o Laos, que abriga alguns dos maiores traficantes de animais selvagens da Ásia, quando o país anunciou inspeções para eliminar o tráfico.

As lojas que vendiam ossos e outras mercadorias derivadas de animais selvagens teriam de fechar. As três fazendas ilegais de tigres do país, que mantinham 700 indivíduos da espécie, receberam ordem de interromper a criação e se converter em zoológicos e centros de conservação. Nenhuma instalação nova para criar animais selvagens em risco de extinção com fins comerciais poderia ser aberta.

Mas Ammann não estava otimista nem esperançoso. Ele citou fazendas de criação de tigres em funcionamento no Laos e disse que éramos considerados “malditos imbecis”. “Todo mundo quer esperança e finais felizes”, referindo-se aos produtores e ao público que ignoravam seus documentários. “E não vejo nenhum final feliz.”

Quase todos os conservacionistas com quem conversei disseram que os achados de Ammann eram bem fundamentados. Ele merecia confiança… mas…

Mas o quê?

“Ele corre muitos riscos”, disse Steve Galster, de Bangcoc, especializado no combate ao tráfico, depois de uma longa pausa.

Foi expulso de uma reunião internacional de conservação por confrontar agressivamente as autoridades.

“É um doido que obtém resultados”, foi como o chamou um consultor policial do Laos.

Ammann me mandou alguns desses resultados: fotografias de um tigre doente numa jaula claustrofóbica – sarnento, os olhos desesperados. Na imagem seguinte viam-se sete tigres em jaulas apertadas comendo frango cru no chão e, tiradas de cima por drones, imagens de duas imensas fazendas de criação de tigres mostrando os animais em jaulas e mais jaulas.

Ele incluiu uma carta de 3.700 palavras que enviou à CITES (Convenção sobre o Comércio Internacional das Espécies da Fauna e da Flora Silvestres Ameaçadas de Extinção), a comissão da ONU encarregada de regulamentar o comércio de animais selvagens, acusando-a de ser “grande parte do problema”. Ele mandou a mesma carta a uma autoridade do Parlamento Europeu, com o seguinte comentário: “Para que o senhor não diga que não sabia. Meu lema para fazer isso.”

Liguei para Ammann em sua propriedade no sopé do monte Quênia. Ele disse que voltaria ao Laos antes do fim do ano. Dessa vez, esperava encontrar pessoalmente os que lucravam com a morte dos tigres. “Por que você não vem”, convidou, “e vê com seus próprios olhos?”

Assim, durante dez dias, no fim de 2018, me juntei a Ammann numa viagem secreta a fim de determinar se o Laos cumprira as promessas feitas desde 2016 para eliminar o tráfico de animais selvagens.

Começa a viagem

Cheguei ao hotel no norte da Tailândia depois da meia-noite. Tínhamos planejado nos encontrar às oito da manhã, mas um bilhete de Ammann me esperava, dizendo que teríamos de nos encontrar às sete. Haveria um dia longo pela frente. Depois de um aperto de mãos e algumas palavras rápidas, embarcamos na van e fomos sacolejando rumo à fronteira do Laos.

Ammann queria entrar no país ao anoitecer, quando ele dizia que a verdadeira viagem começaria. Cercado de terra e montanhoso, o Laos tem mais de 2.500 quilômetros de fronteira com o Vietnã e a China, cujo apetite por produtos ilícitos derivados de animais selvagens já dizimou numerosas espécies e transformou o Laos num epicentro global desse comércio. Um relatório de 2017 da CITES foi direto ao ponto: “Qualquer um pode comprar o que quiser e atravessar a fronteira.”

Nos dez dias seguintes, Ammann planejava atravessar boa parte do país, investigar boatos de uma criação de tigres ainda não identificada, comprar de mercadores produtos vindos de tigres e sobrevoar as fazendas com drones. Finalmente, ele se aventuraria num novo hotel e “zoológico” chamado Say Namthurn, em Tha Bak, onde esperava conhecer Keovised, o abatedor de tigres, e seu chefe, Sakhone Keosouvanh, que ajudou a levar a criação de tigres para o Laos.

Dentro da van, estavam com Ammann seu imponente câmera sul-africano Phil Hattingh e uma jovem chinesa de Hong Kong chamada Grace Chan.

“Eles acharão que você é uma cliente”, disse Ammann a Chan, e explicou que seu plano para ela nessa viagem era visitar lojas com uma câmera escondida para comprar produtos de tigre. Ammann conheceu Chan em 2017, quando ela entrou em contato com ele querendo discutir o tráfico de elefantes.

Para reforçar os conhecimentos dela sobre a economia dos tigres, Ammann lhe entregou um livro surrado com imagens de um crânio, um fêmur, uma tíbia e a bacia de um tigre, que descrevia os ossos como “precioso remédio bruto”, cujo uso medicinal na China tem mais de 1.400 anos. Quando a economia chinesa cresceu, as qualidades míticas do animal, nenhuma delas comprovada pela medicina moderna, despertaram o mercado de produtos derivados de tigres.


Ammann acredita que esse “zoológico” da cidade de Tha Bak, no leste do Laos, que visitou em dezembro de 2018, é na verdade uma fachada para vender tigres.

Com apenas algumas dúzias de tigres restantes, o governo chinês proibiu a morte de espécies em risco de extinção em ambiente selvagem e incentivou sua “domesticação” e criação para saciar a demanda desses produtos e, ao mesmo tempo, proteger os animais em seu hábitat. Isso fez a demanda crescer ainda mais, disse Vanda Felbab-Brown, pesquisadora-chefe do Brookings Institution que estudou o setor, e provocou o aumento ilegal da caça de tigres selvagens em toda a Ásia.

Em 1993, as autoridades chinesas proibiram o comércio doméstico de ossos de tigre, mas não fecharam as muitas fazendas que havia no país. Naquele ano, a CITES, que tem poucas ferramentas para fazer cumprir a lei, proibiu a criação de tigres com fins comerciais. A China se irritou com as restrições, naquela época e hoje. Em 2018, o país legalizou o comércio de partes de tigres com fins medicinais, mas, sob pressão internacional, logo reimpôs a proibição.

Para contorná-la, alguns clientes chineses acorrem a cidades de fronteira na área do Triângulo Dourado, onde convergem Mianmar, Laos e Tailândia. Era exatamente o que Ammann queria investigar primeiro.

Devorado pela fúria

Dirigimos durante a noite até uma cidade brotar da escuridão. Carros Lexus e Mercedes passavam pelas ruas, com placas chinesas. As pessoas enxameavam em torno de um grande cassino no centro da cidade.

Conhecida como Zona Econômica Especial do Triângulo Dourado, essa fatia da província de Bokeo é controlada por uma operação criminosa transnacional que “se dedica a uma série de atividades ilícitas horrendas”, como prostituição infantil e tráfico de mulheres, drogas e animais selvagens, de acordo com o Departamento do Tesouro dos EUA, que impôs sanções à rede.

Na primeira manhã ali, Ammann já estava exasperado. O motorista não ia com velocidade suficiente, o computador parara de funcionar e
o hotel onde passamos a noite anterior, o único que ainda aceitava hóspedes ocidentais depois das sanções americanas, acabara de nos mandar sair.

Ammann sabia que às vezes parecia grosseiro, mas aquela não era hora para gentilezas. Nas conversas, ele citava com frequência estudos ambientais que acabara de ler, todos aparentemente sombrios. O planeta logo perderia 60% das espécies de primatas, de acordo com a revista Science Advances, com revisão por pares, que observou que a caça de animais selvagens para consumo de carne apressava a redução: revelação que, para Ammann, não era nenhuma novidade. Era a história de sua origem.

Em 1988, Ammann estava numa pequena embarcação subindo o rio Congo, no então Zaire. Naquela época, já vivia havia duas décadas na África, onde trabalhara como hoteleiro e fotógrafo e, finalmente, enriquecera abrindo e vendendo um acampamento de ecoturismo na Reserva Nacional Maasai Mara, no Quênia. Mas, nas margens do rio, ele viu centenas de primatas abatidos aguardando transporte para feiras próximas. O desmatamento dera aos caçadores acesso a animais antes protegidos pela selva densa.

O horror que sentiu logo tomou conta dele. No início da década de 1990, ele foi até mercadores remotos e acampamentos de lenhadores e voltou com imagens terríveis. Gorilas decapitados. Churrasco de macacos. Chimpanzés abatidos. Ele publicou livros, fez campanha junto aos governos, encabeçou petições internacionais contra o abate de animais selvagens.

Descreveu tudo com detalhes, na esperança de chocar as pessoas e levá-las a agir. “Mergulhados em sangue até os cotovelos”, disse ele em 1995 sobre caçadores de animais selvagens na entrevista dada a um jornal. “Talvez eu tenha me tornado extremado demais”, confessou em outra, e na época muitos conservacionistas concordaram.

Jane Goodall, a renomada defensora dos chimpanzés, disse que ele era agressivo demais, e ele dizia que ela não era agressiva o suficiente. Outros conservacionistas o acusaram de “imperialismo cultural”, e ele contrapôs que eles se preocupavam mais em levantar recursos do que em dizer a verdade.

“Ele não vai parar”, diz a esposa Kathy, mesmo depois de ter sido nomeado Herói do Meio Ambiente em 2007 pela revista Time por “criar consciência, quase sozinho, sobre o problema do consumo de carne de animais selvagens” e de lhe dizerem que desacelerasse.

Duas personalidades brigam dentro dele, explicou Dale Peterson, ex-colaborador. Ele era uma pessoa perto de gente – combativo, cético, “sofrido”, segundo Peterson – e outra perto dos bichos. Esse era o Ammann que parava e falava até sobre o menor passarinho, disse ele, “do jeito mais afetuoso”. Era “movido por algo maior”.

Com essa intensidade crescendo em seu íntimo, ele chegou ao mercado ao longo do rio Mekong, que acompanha a fronteira entre o Laos e a Tailândia. Quando a porta se abriu, lá se foi Chan e, da entrada do mercado, Ammann a observou sumir entre as barracas.

“O Sr. He nos mandou”

Ela estava vestida de preto. Chapéu preto. Óculos de sol pretos. Blusa preta, cujo botão de cima escondia a câmera. Ammann queria que, a princípio, mantivéssemos distância dela. Hoje em dia, os vendedores guardam as joias e os remédios nos fundos e em gavetas ocultas que só se abrem para fregueses chineses ricos – que era o que Ammann esperava que Chan parecesse.

Nós a encontramos no balcão de uma loja ao ar livre chamada Família Exótica. Lá, um magro vendedor chinês dizia: “Sim, temos partes de tigre para vender.” Surgiu um pequeno osso oco de tigre com gravações complexas: 223 dólares. Também uma garra de tigre: 223 dólares. E duas presas de tigre: 1.340 dólares.

Ammann pediu para ver mais. O homem pegou o celular e mandou a Chan um pedido de contato no aplicativo WeChat. Ela só precisava pôr algumas palavras-chave – “geleia” para marfim, “rei” para produtos de tigre – para contornar a proibição total da venda nos principais sites comerciais da China.

Mas um produto raro não aparecia no perfil do vendedor no WeChat. Ele não teria alguma pele de tigre para vender?

“Não há mais peles de tigre”, ele respondeu em chinês. “Agora os tigres do Laos são protegidos.”

Ammann sabia que o Laos prometera acabar com o comércio de produtos derivados de animais selvagens, mas ali estava aquele mercador vendendo exatamente aquilo. Então qual era a probabilidade de que muita coisa tivesse mudado?

A prometida “auditoria total” e o plano do governo de eliminação escalonada dos tigres cativos do país tinham sofrido numerosos adiamentos. Os mesmos criadores de tigres ainda estavam envolvidos nas operações, enquanto a população de tigres flutuava drasticamente, indicando o possível comércio.

Uma fazenda chamada Vinasakhone, onde Keovised trabalhara, declarou uma perda súbita de 300 tigres em 2017 sem explicar como tinha acontecido. Depois, em abril de 2017, um órgão de imprensa vietnamita revelou uma fazenda nova e imensa na cidade de Lak Sao, no Laos, que, no ano anterior, abrigava 106 tigres.

Ammann, ao se afastar da barraca e do mercado, acreditava que agora havia no Laos ainda mais criadouros de tigres até então não identificados. Dizia-se que um deles ficava bem ali no Triângulo Dourado. Ele tinha de descobrir se era verdade.

Dirigimos vários quilômetros e paramos numa estrada de terra desolada, apertada entre a selva e cabanas com teto de palha. Ammann desceu, pegou a câmera e se aproximou do muro, do qual pendiam cartazes elogiando o suposto papel das instalações na conservação do ambiente. “Cuidar de animais raros, proteger o planeta azul”, dizia um deles em inglês.

“Deve ser isso”, concluiu, andando até os portões de metal de um complexo que, pelo que se dizia, era controlado pelo crime organizado local. Ele começou a bater. Um rapaz sem camisa veio ver o que estava acontecendo. Ammann decidiu blefar.

“Diga-lhe que o Sr. He nos mandou aqui”, Ammann instruiu Chan, que não fazia ideia do que ele estava falando mas obedeceu assim mesmo.

O portão se abriu um pouquinho. Ammann sumiu atrás do muro. Eu e Chan fomos atrás. Um som de alegria e assombro surgiu na voz de Ammann. Na escuridão de uma das estruturas, listras se moviam. Mesmo depois de tanto tempo, ver tigres de perto o espantava. Eles eram muito grandes e se moviam com a energia latente de molas comprimidas.

O funcionário queria que saíssemos. Ele fitava Ammann, que continuava a filmar. Chamava o chefe de novo. Mais uma olhada e Ammann estava no carro, indo embora, e não pôde deixar de balançar a cabeça.

“Mas o Laos está fechando as fazendas de criação de tigres, não é?”, falou.

Outra fazenda nova

Dias depois, quando Chan já havia comprado e filmado partes de tigre sendo vendidas em lojas de todo o Laos e encerrado seu serviço, nós a deixamos na capital, Vientiane, e cruzamos o país até a fronteira do Vietnã.

Ammann estava mais mal-humorado que de costume. “É frustrante se preocupar tanto com alguma coisa”, desabafou. “Estarei desperdiçando meu tempo?”

Várias vezes durante a viagem, perguntei a ele por que continuar se achava que seu trabalho era inútil. “O verdadeiro desafio começa quando a gente sabe que nunca vai vencer, mas continua”, respondeu ele numa dessas vezes. “Se tive algumas noites de insônia pelo que vi, bem, então que eu dê a outros uma noite de insônia.”

Agora, a van atravessava um rio lamacento e continuava pela Autoestrada 8. Logo avistamos a cidade de Lak Sao. Saímos da estrada principal, entramos numa aldeia tranquila e pegamos um caminho de terra sem placa.

“É aqui”, disse Ammann. Um pouco além nessa estrada ficava a fazenda de criação de tigres Lak Sao, com cerca de 100 ou mais tigres lá dentro. Hattingh, o câmera, enfiou a mão na sacola e pegou o drone. Eles tinham cinco minutos, dez, no máximo, para conseguir o que queriam e ir embora.

“Se vir gente correndo, traga o aparelho e caímos fora”, ordenou Ammann. “Se pegam a gente com um drone sem licença, podem nos jogar na cadeia.”

Hattingh desceu do carro. Entrou no mato nos fundos do alto muro de concreto do complexo. O drone, do tamanho de um falcão e zumbindo como a cigarra mais barulhenta do mundo, levitou no ar.

O vídeo era transmitido para uma tela portátil e mostrava tigres andando dentro das jaulas, pequenos como insetos.

Essa operação não era como a última, não outro pequeno criadouro de tigres escondido nos morros. Essa era industrial.

O drone desceu. Hattingh correu de volta. Entramos na van e Ammann disse ao motorista que pisasse fundo.

Chegada a Tha Bak

Fomos mais para o interior até chegarmos à aldeia fluvial de Tha Bak. Uma placa anunciava a pousada de Say Namthurn e listava as ofertas: campo de golfe, água potável, zoológico. Tigres rugiam no alto de uma colina coberta pela floresta. Ammann estendeu a mão para a câmera. Era lá que esperava encontrar Keovised.

Ammann ouviu esse nome pela primeira vez no início de 2014. Sua investigação o levou ao centro do Laos, onde Vinasakhone, a maior fazenda do país, guardava centenas de tigres atrás de muros de concreto.

Na época, um dos proprietários era um homem baixo chamado Sakhone Keosouvanh. Com contatos no governo, ele ajudou a elaborar o plano fracassado para salvar os últimos tigres do Laos e representou os criadores de tigres numa reunião internacional para a preservação desses animais. Sua fazenda se promovia como se ajudasse a preservar a população de tigres.

Enquanto isso, a criação, o abate e a venda de tigres aconteciam dentro daqueles muros, de acordo com relatórios do governo do Laos, e o homem que supervisionava boa parte disso era Keovised. (Nem Keosouvanh nem Keovised responderam aos numerosos pedidos de entrevista.)

Foi Keovised quem recebeu um investigador mandado à fazenda por Ammann, equipado com uma câmera oculta, e a história era que estava lá para indagar sobre quatro tigres para uma fazenda que seu “milionário” chefe chinês queria construir.

Com o passar dos meses, os dois homens desenvolveram uma amizade. O investigador levava Keovised para tomar uns drinques e, em segredo, gravava a conversa. Logo, Keovised falava de como os tigres eram ilegalmente criados e abatidos e como suas partes eram removidas, num nível que abalou Ammann.

Nos primeiros dez meses de 2014, Vinasakhone e outra fazenda comercializaram quase oito toneladas de ossos de leões e tigres, os primeiros às vezes vendidos como se fossem de tigres, de acordo com um documento da Divisão de Inspeção Florestal do governo do Laos que obtive. O relatório, noticiado pelo jornal britânico The Guardian, acusava a fazenda de desrespeitar as legislações local e internacional.

Mas nenhuma providência foi tomada contra ela. A fazenda tinha “aprovação do governo”, que cobrava uma taxa extra de 2% sobre todas as exportações de animais selvagens, de acordo com um documento alfandegário do Laos de 2003. Uma pesquisa confidencial sobre as fazendas de criação de animais selvagens do país, feita em 2016 pelo Departamento de Administração de Recursos Florestais do Laos, diz que a fazenda não criava tigres para “pesquisa científica”, como afirmava a licença, mas para abate. Acreditava-se que uma carcaça seria vendida por 30 mil dólares.

“Usamos esse anestésico”, foi a maneira como Keovised descreveu o processo numa conversa com o investigador de Ammann. “Eles caem.”

“Como vocês matam?”, perguntou o investigador.

Alguns têm a garganta cortada. Mas muitos clientes se recusam a comprar a pele furada, por isso “usamos a corda elástica para apertar o pescoço […] até que morram”.

Alguns compradores querem a carne, outros os ossos e outros ainda só um bloco denso de resina endurecida chamada de cola de tigre, feita com a fervura dos ossos.

Em 2016, o novo governo do Laos cedeu às exigências internacionais e anunciou que as fazendas seriam fechadas, acusando-as de vender ilegalmente “produtos derivados de tigres a compradores internacionais”. Pouco depois, 300 dos 400 tigres de Vinasakhone sumiram. Então Keosouvanh, o outro dono, abandonou a fazenda e abriu uma nova operação com tigres aqui. Como Ammann ouviu de seu investigador, ele trouxe consigo o capataz Keovised.

Encontro com o chefe

“Se Sakhone estiver aqui, precisamos ter cuidado”, advertiu Ammann. O criador de tigres era tão bem protegido que nunca enfrentara acusações. Ammann temia aquele poder. Nossas intenções ali não podiam ser descobertas.

Andamos por uma atração turística sem turistas até o pátio do restaurante junto ao rio. “Lá está ele”, disse Ammann baixinho. Keosouvanh vinha em nossa direção pelo pátio, usando camisa social azul, anel e relógio de ouro, com as chaves de uma Toyota Hilux penduradas no cinto.

Durante muito tempo, Ammann só conheceu Keosouvanh de nome, por relatórios de investigações e transcrições traduzidas. Mas agora ele apertava a mão de Ammann e dava um grande sorriso. Keosouvanh se sentou à nossa mesa e nos examinou. As cervejas chegaram.

Ammann, no papel de turista, falou. Por meio de um intérprete, perguntou a Keosouvanh como ganhava dinheiro. “Uma empresa de importação e exportação”, disse Keosouvanh.

Ammann perguntou o que ele exportava. “Principalmente carvão”, respondeu Keosouvanh.

Mais tarde, Ammann me disse que teve vontade de ligar a câmera e confrontá-lo. Queria lhe dizer que na verdade exportava tigres – e acusá-lo de continuar exportando. “Nós os criamos para ter os filhotes” e vender, dissera Keovised recentemente ao investigador de Ammann, um comércio ilegal que uma agência de investigações vietnamita também tinha descoberto.

E havia mais uma coisa: Ammann acreditava ter encontrado a verdade sobre os 300 tigres que sumiram da fazenda de Keosouvanh. Muitos foram mortos, congelados e traficados, de acordo com Keovised e com entrevistas que fiz com mais duas pessoas que sabiam dos tigres sumidos. Mas Ammann não podia dizer nada, não ali.

Em vez disso, deu uma olhada na floresta do outro lado do rio. Parecia muito densa. Muito escura. Com certeza podia haver algo por lá.

“Que animais restam nessa floresta?”, perguntou, fazendo um gesto na direção das árvores. “Será que sobrou algum tigre?”

Keosouvanh o olhou por um momento, o rosto inexpressivo.

“Não”, disse finalmente. “Nenhum.”

O capataz da fazenda

Os tigres não estavam na floresta, mas no alto do morro, no outro lado da pousada. Na tarde seguinte, Ammann passou pelos portões, o rio bem lá para baixo. Estava com os olhos fixos numa estrutura desengonçada: cercas de correntes ancoradas em mourões e cobertas de lona azul. O som do rugido dos tigres estava por toda parte.

Ele entrou. Atrás de duas linhas de cercas, ladeando o corredor estreito, havia vislumbres de dentes e olhos verdes amendoados. Trinta
e cinco tigres, alguns com quase 200 quilos, andavam de um lado para o outro, abrigados separadamente em jaulas de 3 por 4 metros.

De vez em quando, um trabalhador abria uma porta lateral que ligava as jaulas, e lá vinha outro tigre. Os dois acasalavam e se separavam, ato a que Ammann e eu assistimos três vezes em menos de uma hora. Ali em pé, percebi que a vida do tigre se reduzira a isto: andar eternamente de um lado para o outro, uma cruza rápida e uma refeição de frango cru jogada na jaula às cinco da tarde.

“Não se pode licenciar um zoológico desses em lugar nenhum do mundo”, disse Ammann. Depois de passar horas ali, período em que só vimos um grupo de turistas locais pagar a entrada de dois dólares, ele se virou para ir embora. Então, junto à entrada da frente, no cascalho, ele o viu.

Keovised.

Estava sentado a uma mesa coberta de garrafas de cerveja: um homem baixo de dentes amarelos, calça preta empoeirada e chinelos de dedo.

Ammann andou até ele.

Quantas horas ouvira o capataz da fazenda descrever, nas gravações, os detalhes mais macabros do jeito mais indiferente? E agora ali estava Keovised, sentado diante de uma pequena casa de concreto, não fazendo nada além de beber e fumar depois de um dia de trabalho.

Ammann e eu nos sentamos à sua mesa. Keovised sorriu para os hóspedes inesperados e nos serviu cerveja. No entanto, dessa vez, Ammann ligou a câmera. Então, enquanto seu guia laosiano interpretava, ele começou:

“O que vai acontecer com esses tigres?”

“Com quanta frequência vocês recebem turistas?”

“Vimos três casais de tigres cruzando, e daqui a três meses e meio, quantos filhotes?”

Keovised riu e ofereceu mais cerveja a Ammann. Disse que trabalhava com tigres desde 2007, e que essa fazenda, que ele assumira sete meses antes, estava apenas começando. Esses tigres nunca iriam embora. Poucos turistas vinham, mas logo haveria mais jaulas cheias de filhotes. O que ele não contou a Ammann, mas contara ao informante de Ammann: os cruzamentos entre tigres eram profundamente endogâmicos e poucos filhotes sobreviviam, apenas 18 até então.

“Então há muito trabalho a fazer?”, perguntou Ammann, indicando as obras de construção de mais jaulas. Keovised riu outra vez.

Ammann lhe deu outra olhada. Depois terminou a cerveja, desligou a câmera e se levantou da mesa. Já obtivera o suficiente. Desceu o morro enquanto as últimas luzes do dia floriam alaranjadas e vermelhas acima das montanhas.

“Esse é nosso sistema”

Então amanheceu. Ammann instruiu o motorista a levá-lo à capital para apresentar seus achados à sede local da CITES. Ele fitava a janela e pensava em Keovised. Sempre o imaginara poderoso e ameaçador, mas ele não era nada disso. Parecera empobrecido, fazendo o que era preciso para sobreviver.

Pelo menos, Keovised era quem dizia ser, percebeu Ammann, e os divulgadores autoelogiosos das conferências sobre animais selvagens, não.

Logo ele entrava num prédio enorme com uma pasta onde guardava as provas de seus achados. Dois novos criadouros de tigres que não pareciam parques de conservação nem zoológicos. Comércio ilegal constante de partes de tigre. Sinais de expansão em várias fazendas. Alegações que muitos dos 300 tigres sumidos tinham sido mortos. E prova de que algumas pessoas que tinham abatido e vendido tigres ilegalmente ainda atuavam como guardiões dos animais.

Então ele estava numa sala de reuniões nua, diante de um burocrata da CITES. Sentei-me na ponta da mesa, observando a raiva de Ammann começar a se acumular.

“Sabemos que há mais duas fazendas de criação de tigres”, começou Ammann. “Duas novas fazendas de criação de tigres! Você disse que iam fechá-las?” E ele continuou – mas não adiantava.

Leve aos chefes em Genebra, disseram. Não havia nada que o órgão pudesse fazer com informações prestadas daquele jeito.

“Esse é nosso sistema”, disse o funcionário.

Ammann anotou o e-mail do burocrata. Agradeceu-lhe pelo tempo. Pegou a pasta com as provas, que não lhe pediram que mostrasse, e saiu.

Na entrada do prédio, parou um momento. De cada lado da porta havia uma estátua de tigre. Listras tinham sido gravadas no corpo de madeira. Sua expressão estava paralisada em rosnados exuberantes. Ammann estendeu a mão para tocar a cabeça de um deles: um animal antes definido pela ferocidade, agora um ornamento, sem vida e transformado em mercadoria.

Depois, levantou a mão rapidamente e foi embora.

POR TERRENCE MCCOY

DE WASHINGTON POST (9 DE MAIO DE 2019), © 2019 WASHINGTON POST