A verdade sombria: 50.000 galgos são mortos na Espanha

Na Espanha, os galgos que não têm bom desempenho ou envelhecem são abandonados ou mortos por não terem mais valor aos galgueiros.

Redação | 7 de Maio de 2019 às 17:00

BiancaGrueneberg/IstockConheça a história de Börje e Pefo, os cães doutores! -

Tina Solera sabe que o galgo está assustado. Trêmula, a cadela está no meio da rua, num parque industrial vazio, a coluna nodosa projetando-se sob o pelo curto e preto. No mês de junho, na cidade de Múrcia, sudeste da Espanha, o calor é sufocante. A cadela ergue a cabeça esguia, e Tina sabe no mesmo instante que é o galgo espanhol que procura.

Ela avança, com cuidado, sem fazer nenhum movimento súbito. Quando se aproxima, a fundadora da entidade de resgate Galgos Del Sol vê que a cabeça do animal está coberta por grandes carrapatos, a pelagem empoeirada e grudada. A cadela está em péssimo estado.

Tina prossegue devagar, na ponta dos pés. Tão perto, quase lá… Sem aviso, o animal dispara e, em segundos, está a 100 metros, ainda correndo. “Tudo bem, garota”, diz Tina. “Vamos voltar para buscá-la.”

O galgo espanhol é do grupo dos cães lebréus, uma imagem esguia e musculosa de elegância, cabeça estreita e olhos inquisitivos. O pelo pode ser curto e liso ou um pouco mais comprido e áspero, e os adultos pesam cerca de 25 quilos. Os galgos são calmos e amorosos e possuem uma beleza natural.

“Os cães que não tiveram bom desempenho ou envelheceram são abandonados ou mortos.”

Eles são criados para correr numa caçada competitiva em que dois galgos de cada vez perseguem uma lebre viva ou mecânica em campo aberto. Encontrados principalmente nas regiões rurais do país, os galgueros (homens que criam e treinam os galgos para a corrida) produzem muitos animais na esperança de que um seja campeão. A temporada de caça costuma ir de outubro a janeiro e, quando acaba, os cães que não tiveram bom desempenho ou envelheceram são abandonados ou mortos.

“Os galgos enfrentam atos horrendos de crueldade”, diz Pankaj KC, diretor de animais em comunidades da World Animal Protection International e especialista em cães dessa ONG com sede em Londres. “Já foram encontrados animais espancados, apedrejados, queimados com ácido, jogados em poços e enforcados”, lastima ele. Também foram achados na floresta, com as patas quebradas de propósito para morrer de fome.

“Eles aparecem em latões de lixo, valas à beira da estrada e jogados em covas coletivas. O pensamento por trás disso é que o cão de caça insulta o dono se não tiver o melhor desempenho, e aí o dono faz essas coisas como punição”, conta KC, acrescentando que os eutanasiados são os mais sortudos. 

50 mil galgos são abandonados por ano no país.

“Sabemos que o número de abandonos é alto”, diz Anna, que lidera a SOS Galgos, em Barcelona. “Há 200 mil galgueros registrados, e muitos têm dez ou mais cães.”

Com base nesses números, ela e outros diretores de abrigos de toda a Espanha afirmam que pelo menos 50 mil galgos são abandonados por ano no país.

Em fevereiro de 2017, a Federação Espanhola de Galgos (FEG), que tem 200 mil membros registrados, divulgou um boletim à imprensa negando o número de galgos abandonados citado pelos abrigos de animais. “Somos contra os maus-tratos de galgos e não somos os autores desses atos de crueldade”, afirmam eles.

“Eu só pensava em salvar esses cachorros. Não percebi que estaria combatendo uma instituição cultural profundamente arraigada”

Quando saiu de sua Inglaterra natal com o marido e dois filhos e se mudou para a Espanha em 2007, em busca de um clima mais quente, Tina, de 41 anos, se viu frente a frente com os galgos agredidos na cidadezinha de Múrcia, onde mora a família, e nos arredores. Horrorizada, em 2011 ela criou a Galgos Del Sol, entidade sem fins lucrativos que resgata e reabilita os animais.

Na época, diz Tina, “eu só pensava em salvar esses cachorros. Não percebi que estaria combatendo uma instituição cultural profundamente arraigada”. Essa instituição é a prática secular e generalizada de criar e treinar galgos para competir em corridas.

“Não há mais dúvidas de que os animais são dotados de sensibilidade física e psíquica”

Em 1987 (mais de 30 anos atrás), o Conselho Europeu aprovou o Tratado 125, a Convenção Europeia pela Proteção dos Animais de Estimação. O tratado delineia padrões e a obrigação moral de “respeitar todas as criaturas vivas, tendo em mente a relação especial que existe entre os seres humanos e seus animais”. Vinte e três de 47 países europeus assinaram e ratificaram o tratado até 2014. A Espanha assinou o tratado em 2015 e o ratificou em julho de 2017.

Isso significou o estabelecimento de critérios mínimos e uniformes de proteção dos animais em nível federal. Na Espanha, há mais uma complicação: suas 17 comunidades autônomas têm de verificar se a legislação regional concorda com esses parâmetros e adaptá-los, se necessário. A entrada em vigor do tratado se tornou lei em fevereiro de 2018.

Assim, embora possa haver acordos europeus e leis nacionais voltados para o bem-estar dos animais, na Espanha é possível as comunidades autônomas aprovarem regulamentos próprios sobre o que pode ou não ser feito legalmente, inclusive o tratamento dedicado aos animais.

É exatamente esse tipo de complexidade legislativa que o Partido Contra Maus-tratos aos Animais (PACMA) está tentando mudar. Esse partido político espanhol faz pressão pela adoção da Lei Zero, uma reforma legislativa abrangente que reconhece os cães como animais sencientes e determina que: “Não há mais dúvidas de que os animais são dotados de sensibilidade física e psíquica e que devem receber tratamento que assegure seu máximo bem-estar.” A Lei Zero também incluiria regras estritas para a criação de galgos, prática atualmente desregulamentada.

“Os galgos podem ter doze filhotes numa única ninhada, e sabemos que alguns galgueros emprenham a mesma cadela quatro vezes por ano”, diz Silvia Barquero, presidente do PACMA. 

Cerca de 150 galgos abandonados vivem atualmente no Centro de Resgate e Reabilitação da Galgos Del Sol, que ocupa 11 mil metros quadrados de terra nos arredores de Múrcia. Tina caminha pelos canis e recorda como cada animal chegou ao centro. “Esta chegou com a pele esfolada e os ossos expos- tos”, lembra ela, apontando um galgo de aparência saudável.

“Fizemos enxertos de pele, e logo ela vai para a Dinamarca, para ser o animal de estimação de uma família.”

Tina vai para o canil seguinte e enfia os dedos pela grade quando o ocupante vem cambaleando. “Pensamos que esse cão fosse paralítico”, diz ela enquanto o animal lambe seus dedos. “Agora ele está recomeçando a andar.”

Cada vez mais galgos são adotados como animais de estimação no exterior

Há denúncias de galgos presos em bunkers subterrâneos sem janelas para não serem alvo dos ladrões de cães. Tina visitava regularmente a propriedade de um galguero e encontrou seus animais bebendo da mesma poça de água fétida, no calor abrasador do verão, vivendo de pouco mais do que restos de comida. Para treiná-los, não é raro que o dono amarre uma dúzia de cães a um carro ou motocicleta e dê voltas para que se exercitem em alta velocidade.

Silvia Barquero diz que a relutância nacional de aprovar e impor leis que regulamentem os galgueros se deve, em grande parte, ao fato de que o sistema de representação proporcional favorece mais o voto rural do que o urbano. “Há deputados no governo apoiados por regiões onde a maioria caça com galgos. Os partidos simplesmente não podem se dar ao luxo de perder esses votos rurais”, observa ela.

A ajuda de voluntários, de todas as partes do mundo, é imprescindível 

Domingo, de manhã cedo, Tina está de volta ao parque industrial de Múrcia para procurar o galgo que saiu correndo dois dias antes. Com ela está Kim Sas, voluntária dedicada que largou o emprego e o lar na Alemanha para trabalhar em tempo integral com os cães do centro de resgate.

Kim é a primeira a avistar a cadela trotando no meio da rua, a uns 100 metros. Quando a alcançam, ela está descansando num trecho sombreado da calçada.

Quando a cadela está a seu lado e parece relaxada, Kim passa a coleira da guia suavemente pelo seu pescoço.

“Ela conseguiu!”, exclama Tina, que leva a van até onde Kim abraça com carinho a nova moradora da Galgos Del Sol.

De volta ao centro, Tina dá à cadela medicação carrapaticida e um nome,

“Lili”. Depois, tira sua foto. Ela sabe que as imagens e os vídeos são im- portantes no próximo estágio da vida de Lili: a adoção.

O trabalho das dezenas de entidades de defesa dos galgos espalhadas pela Espanha parece estar fazendo diferença. “É maravilhoso que mais e mais pessoas estejam amando esses cães como animais de estimação”, alegra-se Tina. “Mas a adoção não resolve o problema básico: a falta total de instrução e empatia pelas necessidades dos cães e uma federação que não fará nada.”

Pankaj KC, da World Animal Protection International, concorda plenamente. “Esses atos, escondidos por trás do véu da cultura tradicional, são de crueldade deliberada”, afirma ele. Pankaj acredita que, no fim das contas, aumentar as informações sobre o sofrimento desses animais lindos e gentis é que vai gerar a revolta necessária para provocar grandes mudanças.

“Os europeus amam cães. Não permitirão que isso continue.”

Por Lia Grainger