Migrantes: a conexão Líbia

O Moonbird, avião de busca e resgate operado pela ONG alemã Sea-Watch, está numa missão de reconhecimento e sobrevoa o Mediterrâneo a 4.500 metros de

Redação | 1 de Abril de 2020 às 01:01

JULIE BOURDIN/SEA-WATCH.ORG -

O Moonbird, avião de busca e resgate operado pela ONG alemã Sea-Watch, está numa missão de reconhecimento e sobrevoa o Mediterrâneo a 4.500 metros de altitude. Com binóculos, a tripulação avista um pequeno bote inflável branco à deriva na vasta extensão azul das águas internacionais ao norte da Líbia.

São 13h18 de 28 de outubro. Quando o avião se aproxima, a tripulação conta 15 pessoas a bordo, incluindo crianças e bebês. Os adultos acenam para pedir ajuda. O Moonbird entra em contato com seu oficial de ligação aérea (ALO, na sigla em inglês) na base, que manda um pedido de ajuda às guardas costeiras e a todas as embarcações na área. O rebocador offshore VOS Aphrodite está a poucos quilômetros. É chamado várias vezes, mas não atende. O ALO entra em contato com a guarda costeira líbia e pergunta se vão atender ao pedido de ajuda. A voz no outro lado vem cheia de estática, mas a mensagem é clara: “Hoje não… mau tempo. Nossas embarcações são de fibra. Não são boas com mau tempo.”

“Vocês estão dizendo que a guarda costeira não vai sair por causa do mau tempo?”, pergunta o ALO, com descrença. Há uma pausa e, depois, a resposta: “Sim.”

Duas horas se passam. O Moonbird verifica o barco de vinte em vinte minutos, mas o combustível está acabando e é preciso voltar à base. Mas nem tudo está perdido. Outra organização de resgate recebeu o pedido de ajuda. Um barco tripulado pela ONG espanhola Proactiva Open Arms acabou de desembarcar 45 pessoas que resgatou de outro barco. Mas a embarcação de resgate e seus 17 tripulantes estão em Malta, a cerca de 18 horas.

Imperturbáveis, eles decidem ajudar. O Open Arms navega a noite toda, com tempo cada vez pior. O comandante Ricardo Sandoval e sua equipe estão preocupadíssimos com a segurança dos passageiros do bote inflável. Mas, às dez da manhã seguinte, recebem notícias do Moonbird, que está de volta no ar. Após mais de duas horas de busca, o bote é avistado e ainda flutua.

A pequena Menissa e sua mãe, salvas do afogamento.

Muitas horas depois, o Open Arms localiza a embarcação. Está meio esvaziada e quase afundando, mas os socorristas chegam a tempo de salvar os oito adultos e as sete crianças a bordo. Há dois bebês, uma menina chamada Menissa e um menino, Wasim, que fará seu primeiro aniversário no dia seguinte.

Às 15h15, o Open Arms manda uma mensagem à base: “Todos salvos.” Os migrantes e refugiados resgatados, vindos de Líbia, Marrocos e Tunísia, são transferidos para um barco da guarda costeira maltesa e levados para terra firme em Malta.

Depois do resgate, tanto a Sea-Watch quanto a Proactiva Open Arms criticam a falta de apoio de autoridades e governos. A Sea-Watch condena “os navios mercantes que recusam todas as comunicações de nosso avião de reconhecimento Moonbird e os centros oficiais de coordenação de resgate marítimo que valorizam mais a responsabilidade formal do que a vida humana”.

E Oscar Camps, fundador da Proactiva Open Arms, eleito Europeu do Ano pelo Reader’s Digest em 2019, condena a inação da guarda costeira líbia. “A Líbia não é um lugar seguro e, se sua guarda costeira não resgata vidas em perigo com mau tempo, não deveria mais usar esse nome”, diz ele.

Mais do que nunca, há gente deslocada no mundo, forçada a migrar por conflitos armados, falta de oportunidades, pobreza e mudança climática. O UNICEF estima que, atualmente, haja 636 mil migrantes e refugiados na Líbia, dos quais 44.500 são crianças – cerca de um quarto delas sem o acompanhamento de adultos. Em anos recentes, centenas de milhares de pessoas, exploradas por traficantes, arriscaram a vida na difícil travessia do Mediterrâneo em embarcações inadequadas e superlotadas.

Em 2017, um de cada 38 que tentaram chegar à Europa a partir da Líbia morreu; em 2018, menos gente tentou a travessia, mas um em 14 morreu, e a taxa, nos quatro primeiros meses do ano passado, chegou a um em três.

Para os que são resgatados no mar, o sofrimento não acaba. Os países europeus em torno do Mediterrâneo permanecem relutando em permitir o desembarque e discordam de como dividir o fardo de instalar essas pessoas. Continuam a obstruir as entidades humanitárias que salvam do afogamento os que estão no mar e os levam para terra firme.

No ano passado, Oscar Camps foi impedido de entrar em portos de quatro países europeus: Espanha, Malta, Grécia e Itália. Numa ocasião, ficou três semanas no mar com 98 migrantes e refugiados a bordo, tirados de três embarcações separadas que partiram da Líbia. “Foi um ano dificílimo. Desperdiçamos sete meses”, conta ele.

Outras ONGs de busca e resgate foram processadas, tiveram seus barcos confiscados ou perderam a bandeira das embarcações. Os Médicos Sem Fronteiras (MSF), com a parceira SOS Méditerranée, tiveram de interromper as missões de busca e resgate quando cancelaram o registro de seu barco Aquarius no fim de 2018, e oito meses se passaram antes que pudessem zarpar com nova embarcação.

Sob pressão política dos países mediterrâneos do Sul da Europa, até a Operação Sophia, da própria União Europeia, interrompeu no ano passado as patrulhas marítimas e o resgate de migrantes e refugiados. Os portos europeus lhe recusavam entrada rotineiramente, e o vice-primeiro-ministro Matteo Salvini, da extrema direita italiana, foi além e ameaçou com multas de milhares de euros as ONGs que tentassem desembarcar em solo italiano os migrantes resgatados.

Em 29 de junho, Carola Rackete, comandante alemã do Sea-Watch 3, depois de esperar 17 dias no mar com 43 pessoas desesperadas a bordo resgatadas ao largo da Líbia, declarou estado de necessidade e assumiu o risco de entrar no porto de Lampedusa, colidindo com um barco-patrulha italiano quando atracava. Foi presa e ameaçada de até dez anos de cadeia.

Dias depois, foi libertada por ordem de um juiz italiano que disse que a comandante da ONG cumpria seu dever de proteger vidas. Rackete chamou a decisão do juiz de “grande vitória da solidariedade com todos os que se deslocam, como refugiados, migrantes e pessoas que buscam asilo, e contra a criminalização de quem os ajuda”. Mais tarde, ela ganhou a Medalha de Honra do parlamento catalão, ao lado de Oscar Camps.

“A União Europeia é responsável por muita crueldade”, afirma Camps. “Seu plano é reduzir a migração deixando as pessoas morrerem.”

Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, rejeita essas críticas e apresenta uma solução diferente. “Nos últimos cinco anos, mais de 17 mil pessoas se afogaram no Mediterrâneo”, disse ela ao Parlamento Europeu em novembro passado. “No mar, há o dever de salvar vidas […] Mas só salvar não basta. Temos de reduzir a migração irregular, temos de combater contrabandistas e traficantes; isso é crime organizado.”

Nasser al Gamudi, comandante da guarda costeira da Líbia.

Com esse fim, ela apoiou a iniciativa de criar a primeira força fardada autônoma europeia de segurança de fronteiras, com efetivo de 10 mil pessoas. Mas, na mesma semana, uma resolução que levaria a União Europeia a aumentar as operações de busca e resgate para prevenir a morte de migrantes foi derrotada no Parlamento Europeu.

Em vez de apoiar as ONGs, a União Europeia continua a incentivar a Líbia a atuar como polícia de fronteira da Europa. Agora a zona de responsabilidade da Líbia é maior do que nunca, e criou-se uma área proibida para as ONGs que se estende a 175 quilômetros da costa. A guarda costeira armada líbia, treinada pela União Europeia e com embarcações fornecidas pela Itália, intercepta os migrantes no mar e os leva de volta aos países de onde tentam escapar.

Depois da ampla divulgação de violações de direitos humanos, como tortura, estupro e tráfico de pessoas na Líbia, e apesar de uma carta aberta da Oxfam, da Anistia Internacional e da Save The Children, entre outras organizações, que solicitava ao governo italiano que reconsiderasse o fornecimento de embarcações, o esquema foi renovado em novembro último.

Parte da Guarda Costeira líbia também não está satisfeita com o sistema. Anwar Sherif, comandante da Base Naval de Trípoli, protesta: “Não somos responsáveis pela solução dos problemas do governo italiano nem de nenhum outro.”

Nasser al Gamudi, comandante de um dos seis barcos fornecidos pela Itália para interceptar migrantes e refugiados, disse no ano passado ao jornal espanhol El País: “Arriscamos a vida. E ninguém dá a mínima na Europa.”

Embora no ano passado a guarda costeira líbia interceptasse embarcações com 8.965 pessoas, muita gente conseguiu passar. “Desde que as ONGs começaram a sumir do Mediterrâneo, passamos frequentemente a receber pedidos de resgate e chegar tarde demais”, lamenta Al Gamudi. “Encontramos barcos afundando, gente morrendo… Às vezes, temos quinhentas pessoas diante de nós, e só conseguimos recolher trezentas.” Ele acrescenta que nenhum dos resgatados quer ser resgatado. “É o fim de seus sonhos.” Ele argumenta que as ONGs deveriam ajudar. “Não somos capazes de fazer o serviço sozinhos. Estamos cheios de lidar com os italianos.”

Charlie Yaxley, do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), confirma que as ONGs que poderiam ajudar foram obstruídas no ano passado, de modo que “enquanto em anos anteriores vimos pelo menos seis e, às vezes, mais de dez barcos de resgate de ONGs, muitas vezes o número se reduziu a zero”

Uma crítica comum às operações de busca e resgate, segundo Yaxley, é que agem como “fator de atração” e incentivam as pessoas a se arriscar nessas viagens. “Mas a análise da partida dos barcos prova que isso é falso”, diz ele. “O número médio diário de pessoas que partem do litoral líbio na verdade foi mais alto nos dias em que os barcos das ONGs não estavam operando.”

O Instituto Universitário Europeu, que monitorou o fluxo migratório da Líbia para a Itália entre 2014 e outubro de 2019, concluiu que “não há relação entre a presença de ONGs no mar e o número de migrantes que partem do litoral líbio”. O instituto diz que sua análise indica que as partidas da Líbia foram determinadas principalmente pelas condições do tempo e pelas políticas de “contenção no litoral”.

“A maior prioridade tem de ser salvar vidas no mar”, alerta Yaxley. “Se o barco mais próximo capaz de fazer isso for da guarda costeira estatal, nem é preciso dizer que isso é preferível a deixar as pessoas se afogarem. A questão é o que acontece depois. Precisamos que as pessoas sejam levadas para outro lugar, não para a Líbia.”

Os migrantes e refugiados interceptados pela guarda costeira líbia ficam em centros de detenção no país, sem acesso a advogados, tribunais nem possibilidade de recurso.

Desde junho de 2016, os Médicos sem Fronteiras estão presentes na Líbia; equipes médicas têm permissão de fazer visitas semanais a oito centros, três deles em Trípoli, no epicentro do conflito civil. “Imagine estar trancado ouvindo bombardeio numa área mergulhada em combates”, diz Sonal Marwah, gerente de defesa da entidade. “Nossas equipes têm visto a angústia mental aguda dos que vivem num limbo, sem saber o que vai acontecer. Ouvimos todas as histórias de terror de migrantes levados para lutar na linha de frente, e vimos alguns outros sumirem.”

“A Europa vem pedindo o fechamento dos centros de detenção, mas continua a apoiar a guarda costeira líbia, que intercepta refugiados e migrantes que, então, lhe são devolvidos. Não é preciso ser muito inteligente para ver a contradição.”

Como medida de emergência, o ACNUR está tentando evacuar alguns dos milhares de refugiados em centros de detenção na Líbia para outros países seguros fora da Europa, como Ruanda e Níger.

Enquanto isso, a Open Arms está de volta ao mar, e Camps voltou a equilibrar ações e campanhas de divulgação, incomodado com um surto de migração pelo Egeu e uma nova rota que se abriu para Chipre. “Este período será visto com vergonha pela História, por conta de ações tomadas que transgridem os direitos humanos e a legislação marítima internacional”, adverte Camps. “Mas as embarcações humanitárias têm o direito de estar no Mediterrâneo e não estão cometendo nenhum tipo de crime. Portanto, a situação só pode melhorar.”

As discussões da União Europeia, encabeçadas por França, Alemanha, Itália e Malta, resultaram na assinatura por alguns estados membros de um mecanismo de solidariedade para abrigar migrantes e refugiados em todo o bloco. A República Tcheca, a Hungria, a Polônia e a Eslováquia estão entre os países que se recusaram a apoiar a iniciativa. “Veremos o que acontece”, diz Camps.

A Proactiva Open Arms está envolvida na criação de uma aliança de governos municipais de toda a Europa dispostos a receber os migrantes e integrá-los à sociedade. “Já estamos trabalhando com cidades da Espanha, da Itália, da França, da Grécia e da Alemanha, e isso é positivo.”

E também há solidariedade entre as ONGs de busca e resgate. “Fazemos encontros regulares e, pouco a pouco, tentamos chegar a recomendações e acordos”, explica Camps. Ele acrescenta com ironia: “Quanto a nós, também temos nosso próprio governo tentando nos processar, multar e bloquear. Não há nada fácil no que fazemos.”

POR SORREL DOWNER