A brincadeira de morrer na gangorra

Uma menina solitária encontra um caminho para a socialização na hora do recreio ao transformar uma inocente gangorra em um brinquedo perigoso.

Claudia Nina | 19 de Janeiro de 2020 às 10:00

Bilanol/iStock -

Aquele era seu momento supremo, a glória absoluta: aos 9 anos, sentia-se com o poder de matar e de morrer nas mãos – e nos pés, principalmente nos pés.

Quem olhasse de longe, antes do uso, veria apenas uma gangorra inocente. Mas alguém inventou a ideia de “bater”, e ela logo se afeiçoou ao plano e começou a liderar a transgressão do brinquedo. Era assim: no meio, de cabeça baixa, bem baixa porque senão morreriam com os crânios massacrados, iam os que aceitavam embarcar na gangorra sob o governo dos pés que conseguiam fazer o brinquedo “bater”. No alto, os que sabiam navegar com fúria.

“Bater” significava fazer as extremidades tocarem o ferro acima por onde as correntes da gangorra se prendiam. Os “batedores” também corriam risco, claro.

Era de fato e por todos os lados uma brincadeira de matar e morrer.

Ela tinha plena consciência disso, apesar dos 9 anos. Era o momento em que experimentava a liberdade máxima dentro daquele recreio que amava. A possibilidade de viver além das paredes da casa apertada e da detestada sala de aula deveria ser vivida em plenitude, ainda que pudesse morrer no meio do caminho.

Muitos que se ofereciam para embarcar desistiam quando sabiam que a hora era de “bater”. Às vezes, os que determinavam as regras do jogo (como ela) faziam concessões, e o brinquedo funcionava sob a inocência, suave como um barquinho de pesca. A maioria das vezes, porém, a gangorra remava na fúria.

Era o único momento em que reinava na frente das colegas. Na maior parte do tempo, não conseguia muita interação, a escola era sempre um tempo difícil, fosse porque detestava estudar ou porque lhe faltava o dom de pertencer a grupos.

Quando não gangorrava de morrer, estava quase sempre sozinha no recreio.

O tempo da gangorra da morte durou até quando saiu do colégio. Nunca ninguém morreu nem quase morreu. Ela sobreviveu a ponto de ganhar até uma nova vida em outra cidade, onde aprendeu a brincar de viver e a fazer amigos de verdade.

POR CLAUDIA NINA – claudia.nina@selecoes.com.br

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