Os bilhetes de amor e a grande decisão

Confira a nova coluna da escritora Cláudia Nina, sobre bilhetes que tornam-se escassos à medida que o amor de um casal se esvai.

Claudia Nina | 29 de Novembro de 2020 às 10:00

Cineberg/iStock -

Ele saía cedo e deixava, todos os dias, debaixo da xícara ou do prato ou do copo um bilhete com desenho a caneta. Toscos, infantis, eram para ela um carimbo de que precisava para ter certeza de que era amada. 

Ela trabalhava em casa, na morna rotina imposta pelas circunstâncias. Tomava café olhando o silêncio e os ninguéns lá fora, mas, ah, quanta recompensa: os bilhetes com desenhos que ele deixava.

A alegria era descobrir onde, e ela fingia que era difícil adivinhar – pires, xícara ou copo? Encontrar onde estavam os preciosos bilhetes fazia de sua primeira hora do dia alguma coisa que alimentava o restante do tempo.

Foram logos anos de bilhetes, sempre deixados nos mesmos lugares, sempre dizendo a mesma coisa – os desenhos eram reproduções de situações que eles viviam, corações voavam nos céus do cenário, os dois eram feitos de traços-palitos porque ele não sabia fazer carne – só o osso das pessoas. Mas ela achava linda aquela precariedade e também a regularidade dos bilhetes. Quanto amor.

O tempo passou e com ele surgiram as contrariedades.

Os bilhetes se escassearam à medida que as dissonâncias aumentavam. Ele exigia dela o que ela não queria ser. Ela só queria que ele a amasse – onde estavam os bilhetes, os corações voando no céu do cenário, a brincadeira de esconde-esconde dos guardanapos desenhados?

Ele se tornava mais e mais nervoso, reclamava de tudo a todo o momento. Ela perdeu a vontade de acertar. Quanto mais ela reagia, mais irritadiço ele ficava.

Até que um dia, ele disse uma frase que virou um balão gigante e indestrutível:

– Cala a sua boca. Eu sou pelo menos dez vezes mais inteligente do que você.

Ela não disse palavra. Recebeu o tapa na cara que era aquela frase, levantou-se, arrumou o vestido, seu quarto, quis dar uma aparência de tranquilidade ao seu mundo de fora – por dentro, ela ruíra, mas algo de bom faria daquilo.

Ele saiu para o trabalho.

Ela fechou a porta – trancou.

Dentro de duas horas, ela ligou para ele:

– Para a casa você não volta mais.

Ele não entendeu nada. Como de repente aquela mulher incapaz de retrucar uma agressão toma uma atitude daquelas? Ele tentou reagir, mas não teve jeito. Voltou apenas para pegar o que era seu, já embalado para viagem de nunca mais.

Os bilhetes ela achou por acaso arrumando uma gaveta. E que alegria foi esmigalhar um por um sem a menor curiosidade de reler um que fosse.

Talvez ela não tivesse prestado muita atenção aos desenhos – ele só fazia o osso das pessoas.

POR CLAUDIA NINA – claudia.nina@selecoes.com.br

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