O taxista solidário

Às vezes, quando tudo parece cinzento e você acha que está completamente sozinho, surge alguém que faz com que você veja que ainda existe solidariedade.

Redação | 10 de Junho de 2018 às 08:00

a-poselenov/iStock -

Ela não iria comemorar o aniversário de 60 anos, porque não se sentia à altura de sua idade. Os filhos crescidos e sumidos deixaram um vácuo ainda mais gigante do que a partida do marido, que enlouquecera e logo depois morreu. Não teve coragem de confessar nem para o analista a falta que o homem não fez e de como estava aliviada por não ter que viver o tempo que lhe restara cuidando de um velho demente.

Era um segredo de espelho.

Não havia com quem comemorar a liberdade.

Os amigos não estavam disponíveis nem os familiares – pela primeira vez, estava de frente com ela mesma. O agravante era ser dia de aniversário. Tentou fingir que não existia, quem sabe assim seria mais fácil ver o tempo passar, sumindo pouco a pouco, como naquele filme em que as pessoas desaparecem das fotos. Ela conseguiu se convencer de que não existia até quando sentiu uma dor muito forte no peito. Era uma quase morte, pensou.

Imediatamente, tratou de fazer uma pequena mala. Iria se internar, tinha que correr para o hospital antes que fosse tarde e ela não precisasse mais fingir que não existia. Com movimentos lentos, caminhou até o elevador e desceu. Chamou um táxi na rua mesmo. Estava chovendo muito. Entrou pingando no carro, escorrendo no banco a aguaceira.

– Oi, moço, me desculpa, mas não me lembrei de pegar um guarda-chuva. É que estou morrendo. E hoje é dia do meu aniversário.

Era do tipo que adorava conversar com estranhos, especialmente aqueles que não veria nunca mais. O taxista ficou apreensivo. Quis saber:

– Mas o que a senhora tem? Posso ajudar?

A pergunta foi quase uma declaração de amor. Há quanto tempo ninguém se preocupava com ela.

– Moço, estou com dor no peito. É coração. Vou morrer. Me leva para o hospital.

O taxista era um solidário.

Ele não só a levaria, como também tentaria fazer de tudo para que chegasse mais calma ao destino – fosse o destino a morte ou o hospital.

Quando chegaram, de tão preocupado, ele aguardou que ela fosse atendida. Não se faziam mais pessoas daquela qualidade, pensou, já imaginando, quem sabe, que ele talvez pudesse ter se apaixonado um pouco por ela. Além de solidário, era um romântico…

Não se sabe quanto tempo demorou até que os médicos a atendessem. E, depois dos exames de praxe, chegaram à conclusão: não era nada no coração, mas uma dor de gases que se irradiara. Não seria no dia daquele aniversário que ela morreria.

Quando viu que o taxista a esperava, não acreditou. Seu único convidado no aniversário inesquecível. Antes de chegar em casa, pediu que parassem em uma padaria. Ela desceu e comprou um bolo de fubá, enfiou um fósforo, acendeu. Soprou a vela improvisada no carro mesmo, enquanto pensava que não se pode tão facilmente se esquecer da própria existência. Haverá sempre alguém com quem repartir alguma coisa nessa vida…

Ele a deixou em casa, ela já com o coração partido, mas feliz de algum modo, porque tinha sido amada em seu aniversário de 60 anos. O coração ia bem, muito bem de saúde.

Por Claudia Nina – claudia.nina@selecoes.com.br
Jornalista e escritora, autora, entre outros livros, de Amor de longe (Editora Ficções)