O ritual compartilhado com a rua

Por causa do calor, o casal resolver expor, na varanda de casa, um ritual íntimo e secreto, desde os primeiros tempos do relacionamento.

Claudia Nina | 11 de Abril de 2021 às 10:00

stefanamer/iStock -

Qual dos dois decidiu não faz diferença agora. O que era secreto, um ritual só deles, desde quando moravam no pequeno apartamento lá do começo, veio a público. Ele colocou a cadeira na varanda, e ela chegou, aconchegou-se, arrumou a camisola. Estavam ambos com roupa que não se mostra, mas, como era para não haver mais segredos, não estavam nem um pouco preocupados. Até porque havia momentos em que só existiam os dois no mundo. Aquele era um deles.

Ele estava sem camisa, com uma bermuda de dormir que, se fosse vista de perto, tinha as laterais puídas. A camisola dela era muito branca, de alça, transparente, dava para ver até as veias saltadas que ficaram sobrepostas com o tempo. Eram velhos no calendário da humanidade, mas o que tinham um pelo outro não envelheceu junto. O ritual.

A luz da varanda acesa, que era para espalhar a cena pela rua.

Ele começou passando a mão de leve no pescoço dela e logo depois subiu para a nuca. Em seguida, passou lentamente os dedos pelos cabelos ralos que nem estavam embaraçados. Só que não mudaria o ritual em nenhum gesto para que ela não soubesse que ele tinha percebido o quanto seus cabelos haviam minguado. Então, pegou o pente e começou a repartir as mechas. Na mesa ao lado da cadeira, havia um pote sobre uma toalhinha azul. E de dentro ele tirava o produto que, com um pincel, cobria as partes esbranquiçadas que eram tão brancas que reluziam lá embaixo. No começo, ele pintava as mechas porque ela tinha cismado de trocar a cor do cabelo, mas, aos poucos, a tinta era para disfarçar a velhice. Todos os meses, o mesmo ritual no banheiro. Aquela noite diferente era uma exibição calma.

Quem chegasse perto poderia ver a cara mansa da mulher sendo cuidada pelo homem que, àquelas alturas da vida, fizera questão de mostrar o ritual – sim, a ideia foi dele, estava calor, não havia por que se enfurnarem no banheiro.

Ficaram ali até que os minguados fios ganhassem tinta.

Começou a garoar. Entraram os dois, lentos, escorados.

Criavam outro ritual dentro do ritual.

Que a rua soubesse como aquele homem gostava de cuidar da sua mulher.

POR CLAUDIA NINA – claudia.nina@selecoes.com.br

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