O ritual da janela herdado

Ela repetia com as filhas o ritual a que o pai a submetera. Quando se deu conta, soube que a razão nem sempre responde por nossos atos.

Claudia Nina | 26 de Setembro de 2021 às 10:00

gorodenkoff/iStock -

Ela tinha lá seus 18, 19, 20, 21, 22… Até sair de casa e testar sua própria sobrevivência, era sempre o mesmo ritual. Passava pela sala, avisava ao pai que ia sair, ele perguntava para onde e dizia: cuidado para atravessar a rua. Depois, quando ela descia e olhava para cima, ele estava pontualmente na janela para ter a certeza de que a rua tinha sido atravessada com êxito. Não houve uma só vez em que o pai descumprisse o ritual de sempre, e ela achava horrível a sensação de ser vigiada – sonhava pelo dia da liberdade suprema, quando aquela tortura iria acabar.

A vida seguiu seu ritmo. Ela teve duas filhas. O que aconteceu quando elas começaram a sair sozinhas? Reativou o antigo comando do pai e começou a repetir o mesmo gesto, as mesmas palavras: cuidado para atravessar a rua, cuidado para atravessar a rua… E, tão logo uma delas saía, ela se prontificava a ficar na janela, não importava o que estivesse fazendo, largava tudo e ia ver se as meninas conseguiam dar os primeiros passos de rua sozinhas. Parecia que, se ela não acompanhasse com o olhar, algo aconteceria – ela teria, assim como o pai, o dom de preservar a vida dos seus afetos? Seu pai achava que sim, ainda que isso nunca tivesse sido dito, apenas adivinhado.

O tempo corria, as filhas cresciam, e ela insistia no ritual, tal como seu pai sempre fizera.

Chegava ao ponto de ser criticada, ridicularizada, amaldiçoada até – as filhas não aguentavam mais a vigilância, seu eterno debruçar na janela. Elas cresciam como se grandes olhos estivessem sempre ao encalço, para onde quer que fossem. Elas cresciam exatamente como ela cresceu: olhando para cima e vendo lá no alto olhos que espreitavam seus passos…

Um dia, ela se deu conta do que estava fazendo. Até um determinado ponto da vida não tinha percebido que repetia o antigo comando do pai. Mas como fazer para rasgar o pulso e tirar aquele chip? Como fazer para aprender a deixar ir, permitir que seus olhos não se debruçassem sobre os passos de rua de suas filhas que buscavam a liberdade? Impossível. Talvez as filhas tivessem que suportar sua vigilância até o momento em que partissem, e ela não pudesse mais acompanhar com o olhar, assim como aconteceu no passado. Era um ciclo natural da vida. Não havia o que fazer.

Os olhos que preservam as vidas que atravessam as ruas eram uma herança genética.

POR CLAUDIA NINA – claudia.nina@selecoes.com.br

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O segredo da mulher de 100 anos no meio da rua.

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