O senhor dos escombros

Uma relação em que apenas um tem voz pode rapidamente se transformar em ruínas, principalmente se os escombros do ambiente espelham a relação.

Redação | 17 de Março de 2019 às 10:50

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Ele pensou que ela sempre estaria lá: disponível, afável, meio quieta e prestativa. A mulher se esqueceu de lembrar que esposas não podem ser prestativas – as imprestáveis valem mais. Esticar a mão para levar o copo, levantar para pegar o leite. Ele se acostumou à sombra da mulher –  a imagem, esta ele mal via, pois não perdia tempo olhando para o lado. Vivia em seu minimundo desmoronado: o piso do banheiro estava rachado e infiltrado, as paredes ocas se abriam para acomodar insetos e aranhas, a área dos fundos estava mofo puro, os poucos móveis tinham os pés bambos, podia-se cair ao se sentar, cuidado. Ela tentava limpar, arrumar, consertar, mas ele se irritava: não se meta, me deixa viver como eu quero. A mulher sabia que merecia tratos melhores, mas não tinha força para mudar a realidade estabelecida das coisas: quando tudo começou mesmo?

A vida se tornou uma sucessão de dias iguais desde que o homem se aposentou.

Levantava-se, tomava café, ia ao banco, dava uma volta na praça São Salvador onde comprava quinquilharias. Não tinha mais onde enfiar tanta coisa velha. A mulher não gostava, queria tudo novinho e no jeito, quem dera uma casa bonita. Ele achava o desejo uma falta de noção. Que ela fizesse o favor de não se meter. Gostava de falar ao telefone com os amigos da profissão, a maioria igualmente aposentada, vez ou outra se reuniam todos no restaurante do Flamengo. A mulher, que trocara Minas por um casamento sem filhos, não tinha se lembrado de fazer amigos, a não ser a vizinha de porta que não morava mais lá e Brasília era longe demais para visitar.

Nada tirava o homem dos dias comuns. Ela nem ligava muito, até gostava de ter uma rotina, só queria uma casinha limpa e de pé. O homem poderia ter deixado o seu Zezinho entrar para arrumar tudo, em duas semanas o apartamento estaria pronto.

Se ela ousasse fazer a proposta, ele ergueria a voz: não se meta.

Um dia, o que era um pequeno oco no teto se abriu como uma clareira, em cima da cama do casal. Caíram uns farelos de reboco na cara dos dois. Ela não teve forças para arrumar nem obrigá-lo a arrumar o teto. Mais um escombro. Ele disse: vá dormir no quarto ao lado. Ela, sombra, quieta, disponível, prestativa, foi.

Até que em uma manhã o teto por fim desabou quase inteiro em cima do homem que virou um enterrado vivo. Ele berrou para que a mulher fosse salvá-lo, vem, me ajuda, socorro, dizia à voz pequena e sufocada. Mas nem que gritasse. Onde estava a mulher?

Não estava. De repente, assim como nascem as decisões, ela foi embora – mal sabia o homem-escombro que ela não era mulher de ameaças e, quando batesse a porta da rua, esqueceria o caminho de volta. E ele ficou enterrado até quando não se sabe.

Por CLAUDIA NINA – claudia.nina@selecoes.com.br
Jornalista e escritora, autora, entre outros livros, de Amor de longe (Editora Ficções)

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