Pequenos olhos de andar no mundo novo

Morando em outro país, a jovem quis se integrar pelo meio de locomoção: comprou uma bicicleta com "pequenos olhos" como rodas.

Claudia Nina | 14 de Fevereiro de 2021 às 10:00

Kosamtu/iStock -

Era jovem quando decidiu se aventurar. Largou tudo e foi morar do outro lado do oceano, o que em uma época antes do celular e do Instagram era um grande feito. O mundo era maior. Ficou pequeno depois que as redes sociais criaram o check-in. Tinha 22 anos e não sabia muito bem o que ia fazer no país desconhecido, mas de cara percebeu que, sem uma bicicleta, não seria ninguém. Demorou a descobrir que ela não seria ninguém de qualquer forma, nem que manejasse um trator. O fato é que juntou as economias, mas o dinheiro só deu para comprar uma bicicletinha verde de criança.

Saiu pela cidade dos canais se achando dona do seu pedaço de chão. Pensou que seria capaz de dividir a cidadania do novo porto como se fosse realmente uma pessoa. Aos poucos, percebeu que seu veículo infantil tinha rodas pequenas como olhos infantis. E que elas não seriam capazes de dar conta dos desafios que teria que enfrentar. Com ele, não seria levada a sério por ninguém. Claro que, mesmo depois de ter conseguido comprar “olhos adultos” e uma bicicleta com rodas finas e gigantes jamais foi levada a sério por ninguém.

Ser invisível era a forma de vida possível.

A bicicletinha verde precisou existir na vida nova durante um bom tempo porque durante um bom tempo o dinheiro foi escasso, e ela teria que, sim, ver o mundo com aqueles pequenos olhos gorduchos. Teria que tentar ao menos sobreviver, mesmo sob o peso do ridículo. Ela se sentia minúscula socada no seu veículo baixo e verde, enquanto os nativos passavam com suas magrelas gigantes que pareciam voar, dominavam o vento e as tempestades – talvez pudessem cruzar oceanos.

Ela própria tinha rodas infantis, e sua bicicletinha verde – escolheu logo a verde – era uma tentativa de ver o mundo novo com olhos esperançosos e infantis. Não deu certo.

Talvez sua esperança tivesse as asas quebradas.

Só muito tempo depois conseguiu comprar rodas gigantes, mas aí não se importava mais se a vissem ou se fosse realmente transparente diante dos olhos das pessoas que viviam no mundo novo.

Aprendeu a voar sem asas. E sem esperança.

POR CLAUDIA NINA – claudia.nina@selecoes.com.br

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