Quando a verdade cai no colo

Feliz com a vida mansa e confortável que levava, a mulher decide ignorar a verdade quando ela literalmente caiu em seu colo.

Claudia Nina | 16 de Maio de 2021 às 11:01

fizkes/iStock -

A vida era mansa, sem sobressaltos nem pressa. Ficava quase o dia inteiro em casa, depois de ir ao mercado ou à feira. Os filhos cada um no quarto. O mais velho e seu gato preto. O mais novo e a bola que socava na parede até dormir. O marido estava sempre viajando, e ela sentia um imenso orgulho de ser casada com um homem tão inteligente e trabalhador. Ela abandonou o trabalho quando se casou. Gostou da vida mansa.

Os dias iguais eram um luxo. Ela via a vida da irmã divorciada, o sufoco que era levar dinheiro para casa. Quando colocava o pé na rua, observava o lá de fora como se não fizesse parte do mundo real, como se sair de casa fosse uma obrigação muito breve, logo ela estaria de volta, plena e protegida ao lado de suas plantas. O jardim de inverno tinha virado uma floresta. Apegou-se às plantas com euforia. Incorporou aquários ao cenário da floresta doméstica. Era calmo ver os peixes azuis.      

Tudo na mais completa ordem. Por que alterar o que estava tão satisfatório?

Mas o movimento da Terra fez um sacolejo diferente em uma manhã de abril.

E, enquanto ela estava sentada de frente para um dos aquários vendo o movimento de um dos peixes, vários papéis escondidos dentro de pastas sanfonas na estante em cima do sofá desabaram no colo dela.

Mesmo que ela não quisesse abrir, as pastas cuspiram os papéis – o sacolejo foi forte. E, mesmo que ela não quisesse saber de nada, não houve jeito: eram fotos, documentos, certidões. A verdade caiu no colo dela: o marido tinha outra família.

A mulher ficou horas sentada, de frente para o aquário, com os papéis no colo, sem se mexer. Não sabia com que movimento ela devolveria o sacolejo da Terra. Teria coragem de igualmente se mexer?

Ficou parada, sem reação, até o momento em que se levantou e, cuidadosamente, guardou todos os papéis nas pastas de sanfona. Acomodou as pastas no alto da estante e rezou para que jamais saíssem de lá de novo. Queria que nunca mais a Terra girasse.

Retornou à sua rotina calma. Foi ver a floresta, era a hora de aguar as plantas.

Aquela noite o marido voltaria de uma das viagens. Tinha que arrumar o jantar antes que ele chegasse. A vida mansa não poderia ser interrompida por sacolejos.

A Terra que desse um jeito de não girar.

POR CLAUDIA NINA – claudia.nina@selecoes.com.br

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