A arte de aprender a ouvir

Vim para a África com um propósito: queria ver o mundo fora da perspectiva do egocentrismo europeu. Poderia ter escolhido a Ásia ou a América do Sul.

Redação | 21 de Dezembro de 2019 às 11:00

Benjavisa -

Vim para a África com um propósito: queria ver o mundo fora da perspectiva do egocentrismo europeu. Poderia ter escolhido a Ásia ou a América do Sul. Acabei vindo para a África porque a passagem aérea era mais barata. 

Vim e fiquei. Por quase 25 anos tenho vivido esporadicamente em Moçambique. A razão dessa existência indecisa, com um pé na areia africana e o outro na neve europeia, na melancólica região sueca de Norrland, onde cresci, está relacionada a querer enxergar claramente, a compreender.

Ouvir: um princípio orientador

A forma mais simples de explicar o que tenho aprendido com minha vida na África é por meio da parábola sobre o motivo de os seres humanos terem dois ouvidos e apenas uma língua. Por quê? Provavelmente porque temos de ouvir duas vezes mais do que falar. 

Na África, ouvir é um princípio orientador. Princípio que se perdeu na constante tagarelice do mundo ocidental, onde parece que ninguém tem tempo ou mesmo vontade de ouvir quem quer que seja. Pela minha própria experiência, percebi que tenho de responder muito mais rápido a uma pergunta durante uma entrevista de TV do que respondia há dez, ou talvez há apenas cinco anos. É como se tivéssemos perdido completamente a habilidade de ouvir. Falamos e falamos, e acabamos assustados pelo silêncio, refúgio daqueles que não sabem o que responder. 

A vez da África

Sou velho o bastante para lembrar de quando a literatura sul-americana emergiu na consciência popular e mudou para sempre nossa visão da condição humana. Agora, creio que é a vez da África. 

No continente africano, por toda a parte pessoas escrevem e contam histórias. Dentro em pouco, é provável que a literatura africana estoure na cena mundial – tal qual a literatura sul-americana anos atrás, quando Gabriel Garcia Márquez e outros escritores conduziram uma revolta tumultuada e altamente emocional contra a verdade estabelecida. Em breve, uma efusão de literatura africana oferecerá uma nova perspectiva à condição humana. O autor moçambicano Mia Couto criou, por exemplo, um realismo mágico africano que mescla a língua escrita com as grandes tradições orais da África. 

Se formos capazes de ouvir, descobriremos que muitas narrativas africanas têm estruturas completamente diferentes daquelas a que estamos acostumados. Estou simplificando demais, claro. Mas todos sabem que existe verdade no que estou dizendo: a literatura ocidental normalmente é linear. Há um contar de histórias desenfreado e exuberante, que salta para a frente e para trás no tempo e mistura presente e passado. Apenas como exemplo, alguém que já morreu há muito pode intervir sem qualquer problema em uma conversa entre duas pessoas bem vivas. 

Histórias sem fim

Dizem que os nômades que ainda habitam o Deserto do Kalahari contam histórias uns aos outros em suas andanças de dia inteiro, enquanto procuram raízes comestíveis e animais para caçar. E muitas vezes eles têm mais de uma história sendo contada ao mesmo tempo – não raro, três ou quatro se desenvolvem em paralelo. Mas, antes que retornem ao local onde passarão a noite, eles conseguem entrelaçá-las ou separá-las para sempre, dando a cada uma seu próprio final. 

Muita gente comete o erro de confundir informação com conhecimento. Não são a mesma coisa. O conhecimento abrange a interpretação da informação, implica ouvir. 

Assim, se eu estiver correto de que somos criaturas contadoras de histórias, e enquanto nos permitirmos ficar em silêncio por algum tempo de vez em quando, a narrativa eterna vai continuar. 

Por Henning Mankell