Drama da vida real: Vidas em perigo

Ainda está escuro no litoral sul da Nova Escócia, água e terra indistintas quando vistas de um Hercules CC-130 da Força Aérea canadense. As luzes brancas

Redação | 1 de Maio de 2020 às 01:01

MASteR CORp.dANIeL SALISBURY/14 WING IMAGING -

Ainda está escuro no litoral sul da Nova Escócia, água e terra indistintas quando vistas de um Hercules CC-130 da Força Aérea canadense. As luzes brancas lá embaixo parecem o brilho conhecido das lâmpadas de varandas, ruas e faróis. Mas, quando o Sol sobe acima do horizonte, fica claro que esses pontinhos brancos são os holofotes de centenas de barcos de pesca que deixam o porto rumo ao mar.

“É insano”, diz o major Gregory Boone, comandante de voo, sentado ao lado do capitão Joseph Dobson, que está nos controles. “Vai até o horizonte.”

Nesta manhã, a equipe a bordo do Hercules procura atentamente alguma emergência. São seis na cabine, e o restante da equipe – dois técnicos de busca e resgate, um casal de observadores civis voluntários e um fotógrafo militar – se reúne no porão da aeronave. Sentem-se à vontade, mesmo quando o avião se inclina para a esquerda e para a direita, várias e várias vezes, num movimento capaz de revirar o estômago.

Estamos em 28 de novembro de 2017, o primeiro dia da temporada de lagostas – o dumping day ou dia do lançamento, o mais perigoso numa das atividades econômicas mais arriscadas do Canadá. Nesta manhã, há cerca de 1.500 barcos de pesca de lagosta na água, com mais de 5 mil tripulantes, vindos de portos diversos. Essas são as áreas 33 e 34 de pesca de lagosta, as mais movimentadas no país, e os barcos, em geral com quatro tripulantes, zarpam para instalar armadilhas para os seis meses da temporada lucrativa que vai da última segunda-feira de novembro até 31 de maio. Nesse período, em 2016-2017, os licenciados das áreas 33 e 34 desembarcaram 30.703 toneladas de lagosta, num valor de meio bilhão de dólares. É o segundo maior valor já registrado como resultado de uma temporada de pesca da lagosta.

Na madrugada do dumping day, os barcos, carregados com armadilhas, fazem uma corrida louca até as posições mais cobiçadas. Se quiser suas armadilhas perto de algum baixio ou em algum ponto específico da água, o pescador terá de chegar ao local antes dos outros. É um frenesi que costuma provocar lesões graves e, às vezes, mortes.

Embora recentemente tenha havido algumas melhoras na segurança, com o uso de barcos maiores e mais potentes capazes de navegar com mau tempo, câmeras de circuito fechado para monitorar áreas perigosas de trabalho e tripulantes cada vez mais dispostos a usar coletes salva-vidas, a pesca mantém o nível mais elevado de baixas de todos os setores econômicos do Canadá. Mais de 200 pescadores morreram trabalhando no país desde 1999. É uma média de quase uma morte por mês. Segundo investigação feita em 2017 pelo Globe and Mail, os marinheiros têm mais probabilidade de morrer em serviço do que pilotos, lenhadores e petroleiros. Ser marinheiro mata 14 vezes mais do que ser policial.

Esse conhecimento impõe muita pressão sobre as equipes de resgate que mantêm os pescadores a salvo. Muitos canadenses talvez não percebam como a pesca de lagostas é perigosa nem todo o esforço que o governo federal tem de fazer para oferecer auxílio e proteção. No dumping day, aviões monitoram de cima os pescadores, e os navios da Guarda Costeira ficam a postos, prontos para agir, embora torçam para que isso seja desnecessário.

Pela manhã, enquanto esperavam o café e a omelete na Base das Forças Canadenses (CFB, na sigla em inglês) em Greenwood, na Nova Escócia, antes de decolar, a tripulação de voo do Hercules conversou sobre os eventos trágicos do dumping day de 2015, como se estivessem se preparando para o pior dos casos.

Tradicionalmente, os barcos de pesca de lagosta da Nova Escócia vão para o mar pouco depois do amanhecer do dumping day.

O vento norte era moderado na segunda-feira, 30 de novembro de 2015, e o mar tinha ondas de cerca de um metro – condições decentes para instalar armadilhas para lagostas. Naquela manhã, no Nomada Queen I, Nathan King e Wayne Atwood faziam parte da tripulação do pai de King. Os dois jogavam pela popa do barco a primeira fieira de 20 armadilhas quando a grade que sustentava a pilha de armadilhas a boreste quebrou de repente. O equipamento, inclusive as armadilhas sobre as quais estavam King e Atwood, caiu pela lateral. Uma avalanche de armadilhas, âncoras pesadas, boias e linha mergulhou na água a 6°C, levando os dois homens para o fundo. “Meu primeiro pensamento foi: vai ser bem frio”, conta King.

Embaixo d’água, King não conseguia nadar, porque havia cabos enrolados em seus pés. Ele pegou uma faca que mantinha presa à bota e começou a cortar freneticamente, mas a água estava tão cheia de bolhas que era impossível ver se atingia a corda. Então, pouco antes de ficar sem ar, o colete salva-vidas se inflou, lançando-o à superfície, no meio da confusão do equipamento. “Tudo aconteceu muito depressa”, diz ele. “Quando cheguei à superfície, não sabia o que tinha se passado.”

King estava em choque pelo frio. Não conseguia respirar. Objetos pesados ainda caíam do barco em torno dele. E dava para ouvir Atwood na água ali perto, gritando: “Vamos morrer! Vamos nos afogar!”

Os dois conseguiram nadar e se agarrar ao casco na frente do barco, evitando as armadilhas que caíam pela lateral e pela popa. Ambos ficaram mais de meia hora na água congelante, até que os colegas conseguiram içá-los a bordo. King estava bem, só encharcado e com frio. Mas Atwood precisava de cuidados médicos pelo choque e pela hipotermia.

Um helicóptero Cormorant sobrevoou e baixou dois técnicos de busca e resgate para içar Atwood e levá-lo para terra. Ele foi tratado em Yarmouth, passou a noite no hospital e recebeu alta no dia seguinte.

Cerca de uma hora depois de King e Atwood caírem do barco, a cerca de 35 quilômetros desse acidente, o comandante Todd Nickerson estava no timão do Cock-a-Wit Lady enquanto sua tripulação instalava a primeira fieira de armadilhas ao largo da ilha do Cabo Sable. Na popa, o marinheiro veterano Keith Stubbert viu quando uma armadilha se prendeu na balaustrada a bombordo. Quando foi soltá-la, Stubbert pisou num rolo de linha de pesca no momento que ela começava a se esticar. A linha se enrolou em sua perna e ele foi puxado para a água com as armadilhas.

Como King e Atwood, Stubbert usava um colete salva-vidas, mas dessa vez não adiantou: o peso das armadilhas o prendeu embaixo d’água. E, quando a tripulação tentou puxá-lo, a linha arrebentou. Depois de algum esforço, conseguiram pegar a outra ponta da linha, içar três armadilhas e depois Stubbert. Ele ficara dez minutos embaixo d’água e não tinha mais pulsação.

A tripulação enviou um pedido de socorro, recebido por um Hercules de patrulha. Mas havia cerca de 30 barcos de pesca de lagosta, todos parecidos, na área da ilha do Cabo Sable, e os técnicos de resgate acabaram descendo no barco errado.

Os socorristas chegaram ao barco certo tarde demais. Stubbert foi levado ao Hospital Regional de Yarmouth e declarado morto pouco depois.

Em meados de novembro de 2017, no Centro Conjunto de Coordenação de Resgate (JRCC, na sigla em inglês), em Halifax, o major Mark Norris, de 37 anos, piloto de Hercules da unidade de busca e resgate das Forças Canadenses, examinava o plano para o dumping day. “Queremos ter certeza de que todos os nossos recursos estão prontos”, declara ele sobre sua preparação. “Queremos poder reagir com o máximo possível de rapidez e eficiência.”

O JRCC de Halifax é um dos três centros de resgate administrados em conjunto pelas Forças Armadas e pela Guarda Costeira canadenses. A equipe de cinco coordenadores trabalha 24 horas por dia e é responsável por administrar todas as operações aéreas e marítimas de busca e resgate nas províncias atlânticas do país, na metade leste de Quebec, na metade sul da ilha Baffin e numa área imensa do noroeste do Atlântico. No total, são 5,5 milhões de quilômetros quadrados, do paralelo 42 ao 70 – desses, 80% são cobertos de água. Uma foto de satélite pendurada fora da sala de operações do JRCC mostra essa enorme extensão.

Na mesma parede há uma lista de militares e guardas costeiros que morreram em operações de busca e resgate na área desde 1953: 29 integrantes da Força Aérea e sete oficiais da Guarda Costeira. No pé da lista lê-se o lema: “Que os outros vivam.”

Nas emergências, a equipe do JRCC de Halifax recebe e distribui informações, investiga e coordena a mobilização e o movimento dos veículos de resgate – embarcações da Guarda Costeira e aviões Hercules e helicópteros Cormorant da Força Aérea, dois dos quais em prontidão permanente na CFB de Greenwood para missões.

Norris diz que o planejamento do JRCC para o dumping day começa seis meses antes, quando o pessoal de resgate se reúne com associações locais de pesca para falar sobre as providências de segurança. Todos os comandantes de navios são incentivados a registrar a frequência de seu sinalizador, que indica posições de emergência no Registro Canadense de Sinalização, na CFB de Trenton, Ontário. (Quando ativado por um tripulante ou automaticamente embaixo d’água, o sinalizador indica às equipes de resgate a localização da embarcação e transmite informações sobre ela e a tripulação.) Então, nas semanas anteriores ao evento, o pessoal do JRCC reserva aviões e helicópteros e convoca mais tripulantes da Guarda Costeira.

No dumping day, Norris terá na água quatro cúteres (barcos construídos para serem velozes) da Guarda Costeira, juntamente com duas embarcações de “alta resistência”, o Cape Roger, de 62 metros, e o Sir Wilfred Grenfell, de 68. E, quando os barcos de pesca da área 34 zarparem às seis da manhã, um Hercules, com custo operacional de 13.350 dólares por hora de voo, e um helicóptero Cormorant, com custo de 21.150 dólares por hora, decolarão da CFB de Greenwood. “Estamos nos pré-posicionando”, explica Norris. “Já prevemos que algo vai dar errado.”

Na sexta-feira, 24 de novembro, Jim Newell está em sua mesa na Estação da Guarda Costeira de Clark’s Harbour, na ilha do Cabo Sable, 200 quilômetros a sudoeste de Halifax. Ele é um ex-pescador criado em Clark’s Harbour que entrou na Guarda Costeira, onde o pai também trabalhava, depois de uma recessão no setor pesqueiro no início da década de 1980. Essa época do ano sempre o deixa ansioso. “Não dormia na véspera do dumping day quando era pescador”, diz Jim, “e não durmo até hoje.”

Jim Newell, oficial da Guarda Costeira canadense; o pescador Todd Newell.

Depois de uma semana de preparativos, o pessoal da estação está com todo o equipamento inspecionado e duplamente verificado e começa a monitorar a previsão do tempo de longo alcance. Só resta aguardar o resultado de uma audioconferência a ser realizada entre o JRCC, o Departamento de Pesca e Oceano, a Transport Canada, a Environment and Climate Change Canada e representantes portuários das duas zonas pesqueiras; essa discussão decidirá se o dumping day ocorrerá na segunda-feira, como marcado, ou se terá de ser adiado para terça-feira por causa do mau tempo.

Jim Newell se levanta da mesa e vai até o porto, onde embarca no Clark’s Harbour, o cúter da estação da Guarda Costeira e um dos dois barcos que sairão da cidade no dumping day. Os dois barcos estarão equipados com bombas extras, uma maca, cilindros de oxigênio e uma estação de primeiros socorros na popa.

Para Jim, os eventos de 2015 se destacam. A morte de Stubbert, principalmente. Na época, algo ficou claro para ele: às vezes, os treinos, as providências e as inspeções não são suficientes para manter vivos todos os pescadores. “Acidentes acontecem. É uma realidade triste do setor”, lamenta Newell. “Há vezes em que tudo é feito com perfeição e ainda morre gente.”

Ali perto, Todd Newell – parente distante de Jim – é um dos poucos comandantes no cais de West Head que estão carregando suas armadilhas e preparando-as com iscas de cavala e corvina-vermelha. A possibilidade de adiamento manteve a maior parte dos pescadores em casa.

Todd admite que está preocupado com a próxima temporada. “Sou do tipo nervoso”, diz ele, em pé no convés, pocinhas de sangue de peixe se formando perto das botas. “Estou ansioso para zarpar.”

Esse será o primeiro ano do pescador de 42 anos como comandante sem o pai, Teddy, que morreu em junho com 69 anos. Os dois pescaram juntos durante 24 anos. “Ele era um pescador à moda antiga”, diz Todd sobre o pai. “Gostaria que estivesse aqui só para lhe pedir conselhos.”

Ele está tentando se acostumar com o novo barco, o Ted’s Legacy, de 14 metros, ainda não testado. Com valor de 550 mil dólares, é um investimento imenso num setor conhecido pela oscilação da receita. “No barco antigo”, conta ele, “eu sabia exatamente onde pôr cada coisa, porque o carregamos do mesmo jeito durante muito tempo.” Ele se vira e se junta a um tripulante para carregar as armadilhas pesadas até seu lugar. Eles levarão sete ou oito horas para carregar o limite de 375 armadilhas.

“Tudo vai dar certo”, afirma ele.

O avião Hercules é um cavalo de batalha militar, capaz de transportar quase 45 toneladas de carga. Hoje, o avião leva grande quantidade de equipamento de busca e resgate, com quatro bombas, botes salva-vidas autoinfláveis e boias com localizador via satélite, que podem ser lançados de paraquedas pela rampa traseira até os barcos lá embaixo.

O porão do Hercules é frio, barulhento e cavernoso. As quatro hélices no lado de fora chocalham a fuselagem como um brinquedo. Lá dentro, a cabo especialista Ashley Barker, técnica de busca e resgate há cinco anos, impermeabiliza um kit médico. “Não é bom ir a lugar nenhum sem um kit médico”, diz ela acima do ruído dos quatro motores. Seu parceiro, o sargento Robert Featherstone, enche de café uma caneca térmica. “Muito açúcar”, diz ele com um sorriso. “É o único jeito de ficar com gosto bom.” Os dois parecem relaxados, mesmo sabendo que podem receber um pedido de socorro a qualquer momento.

Na frente, Dobson inclina o avião de um lado para o outro, de modo que a tripulação na cabine e dois observadores no porão possam ver bem a ação lá embaixo. Em certo momento, eles avistam uma luz estroboscópica piscando num barco e dão uma volta para investigar, mas não há nenhuma emergência. Mais tarde, avistam vapor saindo de outra embarcação, mas, novamente, nenhuma crise. E, depois de seis horas de voo sem qualquer chamado de emergência do JRCC, a tripulação leva o avião de volta à CFB de Greenwood. O dia termina sem nenhum incidente grave: exatamente o que todos esperavam.

Mas, com seis meses de pescarias de inverno e primavera à frente, eles sabem que muitos resgates virão.

Por Quentin Casey