“Eu não sei quanto tempo sobreviveria”

Com a perna presa nos afiados dentes giratórios de uma gigantesca esteira de transporte de milho, Kurt Kaser conta os momentos de terror que viveu.

Redação | 1 de Junho de 2020 às 01:01

Geoff Johnson -

A manhã da Sexta-Feira da Paixão começou como qualquer outra para Kurt Kaser, fazendeiro de terceira geração no nordeste do estado americano do Nebraska. Com 63 anos, taciturno e magro como uma tábua, ele acordou por volta das 5h30 ao lado da esposa Lori Kaser. Acendeu um cigarro, calçou as botas de borracha, enfiou um canivete velho no bolso da frente e saiu para dar início ao dia.

Com 3 mil suínos e cerca de 600 hectares de milho e soja, sem falar de uma pequena empresa de transporte, a lista de afazeres de Kurt nunca diminuía, só se reciclava, embora ele entendesse muito bem o perigo de fazer o serviço com pressa. Na sexta série, ele pulou do trator do pai mas caiu com um dos pés dentro da colheitadeira de milho. Apesar de não quebrar nenhum osso, os dentes feriram tanto o pé e o tornozelo que ele passou os três meses seguintes entrando e saindo do hospital, até que os cirurgiões enxertassem pele do alto da perna na parte de baixo para que o ferimento finalmente sarasse.

Todo mundo fica com pressa, e a gente não pensa direito”, diz ele. “Tive sorte naquela vez.

Nessa manhã de abril de 2019, ele mandou alguns funcionários carregarem o milho e depois pulou num caminhão para fazer a mesma coisa. Era um dia lindo para dirigir, recorda Kurt. Céu claro, friozinho e, se fosse possível confiar nos meteorologistas, chegaria aos 20°C até o fim da tarde. Sem chuva, graças a Deus; aquela parte dos Estados Unidos tinha acabado de sofrer enchentes históricas que destruíram um bilhão de dólares em produção agrícola. E só a mais leve brisa noroeste no condado de Thurston.

Kurt vivera ali, a poucos quilômetros da pequena cidade de Pender (1.100 habitantes), a vida inteira, tempo suficiente para conhecer a imprevisibilidade da primavera e apreciar uma manhã calma e ensolarada quando acontecia. Tempo suficiente para se casar com Lori e criar um filho e duas filhas. Tempo suficiente para tropeçar e se levantar, para se apoiar na bebida e largá-la, para sentir o apoio da comunidade quando ele mais precisou.

Naquela Sexta-Feira Santa, a meta era bem simples: transferir o milho que acabara de colher num campo encharcado 15 quilômetros ao sul para o silo da fazenda, agora em silêncio depois que despachara os ajudantes e Lori partira para Sioux City, no estado de Iowa, a cerca de uma hora dali. Ele estacionou o caminhão ao lado do trator, junto ao silo, e usou o sistema hidráulico do caminhão para bascular a caçamba comprida e cheia de milho. Ligada ao trator estava a tremonha, um grande recipiente que Kurt empurrou sob a caçamba do caminhão para receber o milho quando ele abrisse a portinhola. Dentro da tremonha, coberta por uma grade protetora, ficava a gigantesca espiral de ferro com uns 9 metros de comprimento da esteira helicoidal. Seu trabalho era girar lenta e constantemente para transportar o milho até o alto por uma longa calha amarela e jogá-lo dentro do brilhante silo cromado. Com tudo em seu lugar, Kurt ligou a esteira.

Apesar de toda a preparação, alguma coisa não deu muito certo, como costuma acontecer na vida de um fazendeiro. Nesse caso, o milho escorreu depressa demais, formando uma pilha de grãos nas laterais da tremonha e em cima da grade protetora, escondendo a espiral giratória da esteira. Kurt pisou na tremonha cheia de milho para baixar a tampa do caminhão e deter o fluxo.

Na pressa, esqueceu que a grade tinha um buraco bem grande, que ele mesmo abrira meses antes quando o solo estava congelado e não conseguira encaixar a esteira helicoidal sob o silo. Ele só se lembrou disso quando o pé afundou no milho por aquele mesmo buraco – e entrou no funil da esteira helicoidal, que zumbia. A hélice agarrou seu pé e o torceu para a frente, rasgando o jeans e o tornozelo. Ele caiu para trás no caminho de cascalho. As lâminas, ainda girando, o puxavam devagar para dentro da tremonha, ao mesmo tempo que arrancavam a carne dos ossos.

“Quando o milho parou de correr do caminhão”, conta ele, “minha roupa ainda estava agarradas na esteira helicoidal, puxando minha perna, enquanto eu tentava tirá-la.” Ele conseguia ver claramente a tíbia acima do estojo vermelho da tremonha, pelo menos 15 centímetros de osso exposto abaixo do joelho. Ele conseguia ver seu pé cortado sacudindo como uma boneca de pano no alto da tremonha rumo à abertura do silo, farrapos da calça jeans ainda presos nele.

Mas a máquina não largava o que lhe restava da perna. Ele não conseguia atingir os controles para desligar a esteira. Precisava de ajuda. Sabia que estava com o celular – sim, claro, o celular. Ele deu tapinhas nos bolsos, no peito, nas coxas. Nada encontrou. (Mais tarde, metade do aparelho seria encontrado dentro do silo, outra vítima da esteira helicoidal.) Ele poderia gritar por socorro, mas o barulho da esteira encobriria os gritos e, de qualquer modo, não havia ninguém por perto para ouvi-lo. Quanto tempo continuaria consciente, ele não sabia.

“Eu segurava aquele único osso de minha perna, totalmente nu – não havia mais pele nem carne sobre ele –, mas a esteira puxava, e eu estava me cansando”, diz Kurt. “Eu simplesmente não sabia quanto tempo sobreviveria.”

Foi então que ele se lembrou do canivete barato, de cabo preto, no bolso da calça jeans, um dos incontáveis itens promocionais que ele e todos os fazendeiros ganham de vendedores de sementes e fabricantes de equipamento. Ele abriu a pequena lâmina, com menos de 10 centímetros. Não havia o que pensar, não com a esteira faminta ainda a puxá-lo e o buraco na grade com tamanho suficiente para engolir pelo menos mais alguns centímetros dele para dentro. O joelho. A coxa.

Com a mão esquerda, ele segurou o osso abaixo do joelho. Com a direita, começou a serrar músculo, tendões, tecidos, o sangue tingindo seus dedos de vermelho vivo. Ele sentia as pontadas, os tecidos sendo rasgados, a liberação súbita dos nervos a cada corte. O cabo ficou cada vez mais escorregadio, até que perdeu a firmeza, e ele viu o canivete escapulir da sua mão. Milagrosamente, conseguiu pegá-lo com a mão esquerda.

“Seria uma falta de sorte absoluta”, diz ele.

Voltando a segurar o canivete, ele continuou o ato horrendo de amputar a própria perna. Cada golpe da lâmina não era uma agonia? Sinceramente, ele não se lembra. Talvez fosse o choque. Mas uma coisa, uma única coisa lhe passava pela cabeça: “sobrevivência”, explica ele. “Eu queria cair fora de lá.”

Quando os músculos foram cortados e o último tendão serrado, Kurt levantou a perna – o que restava dela – para longe da máquina e largou o canivete na terra.

Agora no piloto automático, ele rastejou até o trator, entrou na cabine e desligou a esteira helicoidal. Depois, rastejou até o caminhão em ponto morto e o desligou também. Não é preciso desperdiçar diesel, deve ter pensado, se é que pensou. Depois de manobrar o corpo e descer do caminhão, ele fincou os cotovelos no cascalho e, aos poucos, começou a se arrastar na direção da garagem, rumo ao telefone do escritório, um trecho longo e silencioso de cerca de 70 metros. Pelo caminho, várias vezes ele desacelerou, parou, pensou em talvez descansar um minutinho. Depois, pensou de novo. Parar, desmaiar, significava morrer. Assim, continuou rastejando rumo à garagem, com um pé e quase sem fôlego; foram os 70 metros mais longos de sua vida.

Uma vez lá dentro, Kurt rastejou até a mesa e se içou o suficiente para pegar o telefone. Ele caiu de volta no chão e, imediatamente, ligou, não para o serviço de emergência, mas para o filho de 31 anos, que passava cerca de metade da vida como voluntário do Departamento de Incêndio e Resgate de Pender. Kurt não desperdiçou palavras.

“Preciso de uma ambulância agora”, disse. “Perdi o pé.”

No meio de uma compra de peças de trator numa loja local, num dia de rotina, Adam achou ter ouvido errado, principalmente quando o pai mencionou “esteira” e “tremonha”.

“Traga uma ambulância agora”, repetiu o pai, e a linha ficou muda.

Adam saiu correndo do caixa. Pulou na picape, enfiou o pé no acelerador e percorreu a toda os 6 quilômetros até a fazenda, ligando para a emergência do caminho. Com as mãos apertando o volante, ele temia o pior: que o pai sangrasse até a morte antes que chegasse.

Menos de cinco minutos depois, ele saía da Autoestrada 16 e entrava na fazenda, correndo diretamente para
a tremonha, mas o pai não estava lá; a esteira estava em silêncio, o caminhão e o trator, também. O quadro não fazia sentido. Nenhum sangue. Nenhum grito de dor. Nenhuma esteira zumbindo. Então, ele notou a porta aberta da garagem e, lá dentro, o pai caído no chão, a camisa e o boné empoeirados, as pernas escondidas pela parede do escritório, fumando talvez o último cigarro de sua vida.

“Como você está?”, perguntou Adam.

Kurt olhou-o do chão, a fumaça saindo dos lábios. “Fiz uma besteira e tanto”, respondeu.

Estranhamente, quase não havia sangue. (Mais tarde, o palpite do médico foram as décadas de muito cigarro de Kurt.) Mesmo assim, faltava o pé, e a perna estava horrivelmente ferida, coberta de terra e detritos, os ossos saindo abaixo do músculo da panturrilha. Embora já tivesse ligado para a emergência na estrada, agora Adam ligou para o chefe do esquadrão de resgate e disse que “viessem a toda”, que o pai perdera o pé e, provavelmente, precisaria de um helicóptero. Adam, então, entrou no “modo bombeiro”, como ele diz. Começou a fazer perguntas ao pai para manter sua lucidez até que a equipe de umas doze pessoas chegasse, alguns minutos depois.

Com cuidado, o esquadrão de resgate pôs Kurt numa maca, levou-o para a ambulância e correu para
o Hospital Comunitário de Pender. Kurt não se lembra muito bem da viagem, mas recorda o voo de helicóptero até o Centro Médico Bryan, em Lincoln, e todas as terras agrícolas encharcadas e enlameadas lá embaixo.

Depois de duas cirurgias, uma semana no Bryan e mais duas no Hospital de Reabilitação Madonna, Kurt voltou à fazenda, o toco de perna envolto numa atadura elástica limpa pouco abaixo do joelho. Por algum tempo, ele ficou preso em casa com um par de muletas, um andador e um número grande demais de cartões de boa recuperação para ler de uma vez.

“É frustrante”, revela Kurt, “mas é simplesmente a natureza do fazendeiro. Não pensa. Age com pressa. Fica cansado. Coisas assim.”

Quatro meses depois do acidente, Kurt recebeu sua perna mecânica e logo estava de volta fazendo o que ama. Com toda a força de vontade
que a família sempre soube que tinha, ajudou a fazer a colheita do outono passado e até usou aquela mesma esteira helicoidal comedora de pernas para descarregar o milho nos silos.

“Quando fomos ao hospital visitá-lo, a primeira coisa que ele disse foi: ‘Por que vocês não estão trabalhando?’”, contou Tyler Hilkemann, funcionário da fazenda, à estação de TV KCAU de Sioux City. “Depois que ele recebeu a perna mecânica, ninguém o segura. Qualquer dia desses a gente lhe rouba a prótese.”

POR CARSON VAUGHAN