Hora de repensar o vício

Com 20 e poucos anos, a atriz de Hollywood Claudia Christian tinha uma relação irrelevante com as bebidas alcoólicas. Mas, com 30 e muitos, bebia demais e

Redação | 1 de Abril de 2020 às 01:01

DUSTIN SNIPES -

Com 20 e poucos anos, a atriz de Hollywood Claudia Christian tinha uma relação irrelevante com as bebidas alcoólicas. Mas, com 30 e muitos, bebia demais e se tornara obcecada pela bebida, ansiando por ela mesmo quando se abstinha durante alguns meses. Tentou os Alcoólicos Anônimos, psicoterapia, hipnoterapia e se internou em centros de reabilitação, mas nada adiantou.

“Meus pais não sabiam o que fazer”, diz ela. “Viviam me perguntando: por que você simplesmente não para? Ninguém entendia o que era ser consumida por um transtorno compulsivo.”

Enquanto a família a condenava e muitos amigos a abandonavam, Holly Evans, sua melhor amiga, continuou ao seu lado. “Basicamente, ela passava o tempo todo tentando esconder o problema”, conta Holly. “Às vezes, queria que eu agisse como um policial, e eu agia… aí, no porta-luvas, encontrava uma garrafa. E pensava: bem, talvez eu possa ajudar a resolver a situação. Mas nada do que fiz deu certo.”

Na América do Norte (Canadá, EUA e México), cerca de 25 milhões de pessoas têm transtorno de alcoolismo; os usuários problemáticos de opioides chegam a cerca de 3,6 milhões, e outros milhões usam outras drogas, principalmente heroína, metanfetamina, cocaína e maconha.

Uma pesquisa realizada pela Fiocruz em 2015 apurou que 5 milhões de brasileiros haviam feito uso de algum tipo de droga ilícita no últimos 12 meses. No mesmo estudo, cerca de 46 milhões informaram ter consumido bebida alcóolica nos 30 dias anteriores.

Atualmente, há 32 milhões de europeus com dependência de álcool, 1,3 milhão de usuários de opioides de alto risco e outros milhões usam cocaína, maconha e outras substâncias ilícitas. Cerca de 1,2 milhão de pessoas da União Europeia receberam tratamento para o uso de drogas ilícitas em 2017. Boa parte do tratamento seguiu programas tradicionais, como os Alcoólicos Anônimos, os Narcóticos Anônimos e os Grupos Familiares Al-Anon.

Mas já passou o tempo de usar modelos antigos.

Hoje, há tratamentos mais novos e comprovados por pesquisas que ajudam com mais eficácia os dependentes e seus amigos e parentes. “Ainda usam coisas feitas nas décadas de 1940, 1950 e 1960, como é que pode?”, indaga Robert Meyers, Ph.D. e professor-pesquisador emérito adjunto de Psicologia do Centro de Alcoolismo, Adicções e Abuso de Substâncias da Universidade do Novo México. “Estamos num mundo muito diferente. Você vai a um médico e pede que operem do mesmo jeito que operavam em 1950? Não, é claro que não. Isso é loucura.”

Holly Evans, amiga de Claudia, apoiou a atriz durante o vício em álcool.

Novo modo de pensar

Nas décadas passadas, quando alguém da família desenvolvia um vício, os parentes eram instruídos a ter uma conversa dura para que a pessoa parasse. Esperava-se que ela tivesse força de vontade para parar de beber ou de consumir drogas e se abster indefinidamente. Na verdade, palavras duras podiam causar discussões e afastamento. Quando sofria uma recaída, a pessoa era considerada fraca demais para combater o vício, e os parentes geralmente se culpavam porque suas tentativas não davam certo.

Hoje, o vício ou dependência é reconhecido como doença, e os tratamentos incluem medicação e uma nova forma de pensar. Na União Europeia, para a dependência em opioides, o tratamento de substituição é o mais comum, porque já se comprovou que reduz os danos e o risco de overdose. Também ajuda a restabelecer a ligação entre o dependente e a família. A recaída é reconhecida como parte do problema; as pessoas não são criticadas, mas incentivadas a continuar o tratamento. “Imaginamos que estamos lidando com uma doença crônica com recaídas e não desistimos de ninguém”, diz o Dr. João Castel-Branco Goulão, diretor-geral do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD), em Lisboa, Portugal. “Mesmo que não tenham sucesso no primeiro evento, no segundo ou quando for… Não há limite.”

Os parentes são incentivados a dar amor, apoio e palavras gentis, não críticas duras, porque lidam com uma doença, não com um fracasso moral. “Os amigos e parentes têm papel importante na decisão de começar o tratamento”, informa a Dra. Dagmar Hedrich, principal cientista de redução de danos do Centro Europeu de Monitoramento de Drogas e Vício em Drogas, em Lisboa. “O autoencaminhamento, inclusive o encaminhamento por amigos e parentes e não por médicos, continua a ser a rota mais comum do tratamento especializado em drogas na Europa”, avalia ela, “e respondeu por mais da metade dos que começaram a se tratar em 2017.”

Diversos programas oferecem informações valiosas aos familiares que querem interagir e compreender melhor os parentes com dependência. “Ninguém quer se tornar alcoólatra nem dependente de heroína, a pessoa só não sabe como parar”, diz o professor Meyers. “Podemos ajudar os parentes a aprender formas diferentes de interagir.”

Os novos tratamentos a seguir podem ajudar. Converse com seu médico.

CRAFT

O Treinamento de Família e o Reforço da Comunidade (Community Reinforcement and Family Training, CRAFT) foi criado pelo professor Meyers. Ele teve a ideia de disponibilizar ajuda aos parceiros de dependentes quando fazia terapia de casais e percebeu que as mulheres tinham alguma influência sobre parceiros que bebiam ou usavam drogas. Assim, quis aproveitar essa influência para ajudar esses parceiros a iniciarem o tratamento.

O CRAFT ensina a interagir de forma empática e positiva, sem gritar nem condenar; a oferecer reforço positivo ao comportamento sóbrio; a ignorar o comportamento negativo e a sugerir tratamento quando o familiar estiver mais receptivo.

Quando seu marido voltar para casa sóbrio, passe um tempo de qualidade com ele. Quando voltar bêbado, aconselha o professor Meyers, autor de Get Your Loved One Sober (Mantenha sóbrio seu ente querido), “ensinamos a dizer: ‘Estou contente que tenha chegado a salvo. Amo você, mas me sinto mal quando o vejo assim. Portanto, vou dormir e conversamos amanhã.’ E aí, afaste-se.”

Os familiares que usam o CRAFT conseguem levar pessoas ao tratamento em 65% a 75% dos casos, contra 12% dos participantes do Al-Anon, de acordo com a pesquisa do professor Meyers.

O CRAFT também aborda a baixa autoestima, a ansiedade e a depressão que muitos sentem quando os parentes bebem ou se drogam. A pessoa passa a perceber que o vício do familiar não é culpa dela e é incentivada a levar uma vida mais completa, fazendo o que gosta. “Nos estudos do CRAFT, constatamos que, mesmo um ano depois de passarem pelo programa, a depressão, a ansiedade e a raiva dos familiares se reduziram”, revela o professor Meyers.

SMART Recovery

L. Hein, de 50 anos, de Søborg, na Dinamarca, se sentiu um fracasso quando descobriu que o filho, então adolescente, fumava maconha. Tanto seu pai quanto o ex-marido tinham sido usuários de drogas, e ela não fora capaz de evitar que o filho os imitasse. Ela diz: “Não consegui aguentar. Fiquei muito doente com todo o estresse, perdi o emprego e precisei de ajuda.”

Ela encontrou o SMART Recovery (Self-Management and Recovery Training, treinamento de autogestão e recuperação), cujas reuniões de Family & Friends (família e amigos) a atraíram. O programa combina o CRAFT com o SMART Recovery, que ensina os parentes a se manterem motivados, a lidar com sentimentos negativos e a ter uma vida equilibrada com base em princípios comprovados por pesquisas, como a terapia cognitivo-comportamental e a terapia de aprimoramento motivacional. Os parentes aprendem a aplicar essas lições à vida. “Os parentes não sabem o que fazer: brigam com as pessoas, imploram, tentam tudo para ajudá-las a se livrar do problema, mas geralmente não dá certo”, explica Bendt Hansen, presidente do SMART Recovery da Dinamarca, em Copenhague. “O Family & Friends os ajuda a perder o hábito de agir como policiais.”

Hein aprendeu a controlar a raiva e a conversar calmamente com o filho, que por fim, consultou um psicólogo a respeito do uso de drogas. Hoje o rapaz tem 23 anos, trabalha em horário integral e visita a mãe regularmente. “Temos um bom relacionamento”, diz ela. “Meu filho confia em mim. Agora, ele sente uma certa segurança comigo, porque não o condeno.”

A SMART Recovery International é uma organização de grupos de apoio que ajuda as pessoas a superar qualquer dependência, além de auxiliar amigos e parentes.

Método dos 5 Passos

No início dos anos 2000, depois de estudarem a experiência de famílias com dependentes, pesquisadores da Inglaterra criaram o Método dos 5 Passos a fim de ajudá-las a lidar com o estresse e a receber apoio. Um profissional treinado escuta o que a pessoa sofreu por causa da dependência de seu familiar, dá informações pertinentes sobre a dependência, ajuda a encontrar maneiras melhores de lidar com a situação, discute o apoio social disponível e decide se a pessoa precisa de auxílio adicional.

“É comum os familiares dizerem que usam menos confronto emocional quando passam a conhecer melhor o problema da dependência e têm mais consciência de sua vida e de suas necessidades”, conta Alex Copello, Ph.D. e professor honorário de pesquisa da dependência da Universidade de Birmingham, na Inglaterra, e um dos criadores do Método dos 5 Passos.

O método ajuda a baixar o nível de estresse, melhora os relacionamentos e guia o parente para o tratamento. “Sabemos, pela pesquisa e pela experiência clínica, que a família pode influenciar o processo quando, por exemplo, incentiva a pessoa a buscar ajuda mais cedo”, alerta o professor Copello.

Métodos ContrAl e Sinclair

As clínicas ContrAl combinam o Método Sinclair – uso de medicação para combater o anseio pelo álcool – com a terapia cognitivo-comportamental para mudar o hábito de beber. A meta do programa não é a abstinência, mas fazer as pessoas beberem menos, e 78% delas conseguem. As pessoas são aconselhadas a tomar um bloqueador de opioides antes de beber, porque amortece o desejo de beber em excesso. Elas também têm consultas com um médico e um psicólogo durante seis meses a fim de aprender estratégias que as ajudem a beber menos. Os participantes bebem com mais responsabilidade e levam uma vida mais produtiva. “É muito mais fácil para os clientes se envolverem num método de tratamento como o nosso quando sabem que não têm de largar tudo neste instante”, diz Jukka Keski-Pukkila, presidente executivo da clínica ContrAl de Helsinque.

Seu amigo ou parente pode levá-lo a uma ou duas sessões para que você aprenda a lhe dar mais apoio e entenda por que a abstinência não é necessária. “Quando se trata do transtorno de uso de álcool, a forma de pensar tradicional está tão arraigada que ninguém consegue achar que é possível apenas reduzir e ficar no controle”, diz Keski-Pukkila. “Tentamos ensinar amigos e parentes a dar o máximo apoio possível ao paciente, sem julgamentos.”

Muitas pesquisas se concentram na dependência e há várias alternativas aos programas de 12 passos para controle do alcoolismo, mas milhões de europeus e suas famílias ainda são afetados pelo vício.

Os especialistas reconhecem a dependência química como doença, mas o antigo estigma social impede que muita gente receba o apoio e o tratamento que obteriam se tivessem câncer, diabetes ou outra doença vista de forma mais favorável, em parte porque a sociedade tende a condenar os dependentes.

“Há muitos componentes de estilo de vida, digamos, no diabetes tipo 2, como o controle da alimentação, os exames regulares e a prática de exercícios, e muita gente não segue as recomendações, o que causa mau resultado clínico”, relata Elise Schiller, que mora nos EUA e escreveu Even If Your Heart Would Listen: Losing My Daughter To Heroin (Mesmo que seu coração escutasse: perdendo minha filha para a heroína). “No entanto, nunca diríamos que não vale a pena tratar a pessoa nem que a culpa é dela.”

Os especialistas acreditam que o acesso mais amplo a programas que atendam dependentes e seus parentes altere o efeito do vício sobre as famílias e sobre a sociedade como um todo. “A questão do problema do álcool e das drogas no mundo é que não temos recursos suficientes para ajudar as pessoas a se manterem sóbrias, contratar mais terapeutas e treiná-los nos programas positivos”, diz o professor Meyers.

Seria bom aumentar o alcance dos programas voltados para a família, assim como políticas que reconheçam que as pessoas sofrem recaídas ou que talvez não estejam dispostas a largar o hábito e ofereçam locais para consumo seguro, com seringas limpas e profissionais de saúde capazes de reverter overdoses ou recomendar tratamentos. Também seria útil oferecer tratamento com medicação aos que estiverem dispostos.

Dez anos atrás, Claudia descobriu o método Sinclair e usou medicamentos para reduzir o anseio pelo álcool. Hoje, ela se abstém de beber, mas sabe que pode tomar um bloqueador de opioides antes caso queira.

Ela administra uma entidade internacional sem fins lucrativos que divulga o efeito do método Sinclair, e seu relacionamento com os pais e a amiga Holly melhorou.

“Não me sinto mais obrigada a ficar policiando Claudia”, diz Holly. “Ela está se cuidando melhor, está se recuperando.”

POR LISA FIELDS