Salvos por milagres

Xisco (esquerda) e Guillem conheciam o perigo de explorar as cavernas. A câmara onde Xisco e Guillem se refugiaram é chamada de Sala dos Três Milagres.

Redação | 15 de Dezembro de 2018 às 12:23

Matias Alexandro -

No meio da manhã de 15 de abril de 2017, um sábado, perto da Cova de Sa Piqueta, Xisco Gràcia Lladó descarregou os tanques de oxigênio da picape. Ele e o velho amigo Guillem Mascaró planejavam passar o dia explorando o sistema subaquático de cavernas da ilha de Maiorca, na Espanha.

Havia mais de vinte anos, o passatempo de Xisco era mergulhar em cavernas. Com 54 anos, robusto, divorciado e pai de dois filhos, ele adorava mapear os muitos túneis e câmaras da ilha e contribuir com seus achados para o corpo crescente de literatura científica sobre as cavernas de Maiorca.

Guillem, também com 54 anos, magro e morador local, mergulhava no oceano havia décadas e começara a explorar cavernas em 2003. Estava contente de estar com Xisco, um dos mergulhadores mais experientes da ilha.

Xisco abriu um mapa e apontou uma área a 900 metros da entrada da caverna. “Há câmaras submersas aqui que nunca foram estudadas”, disse ele, empolgado com a ideia de ser o primeiro a ver as câmaras.

O ar úmido saudou os dois homens ao entrarem na caverna e passarem para a escuridão. Xisco prendeu quatro tanques de ar no cinto, passou três a Guillem. Satisfeito por terem a quantidade certa de ar – suficiente para entrar, explorar e voltar, mais uma hora extra para emergências –, Xisco pôs o regulador na boca e baixou a cabeça na água.

Guillem o seguiu.

Para se deslocar pelo labirinto debaixo d’água, os parceiros de mergulho usavam uma ferramenta simples e consagrada: cordões finos de náilon, marcados com etiquetas numeradas. Quando um túnel se bifurcava, outro cordão se estendia pela segunda passagem.

O caminho sinuoso que Xisco e Guillem seguiriam se dividia muitas vezes, criando um labirinto de possíveis entradas erradas, todas indistintas entre si se não houvesse os cordões e as etiquetas nem as setas que eles colocavam em cada interseção para indicar a saída. Xisco notou que a água estava transparente naquela manhã e que era fácil ver as etiquetas. Os dois homens avançaram, deixando um rastro enevoado de sedimento em sua esteira.

Depois de uma hora navegando pelos túneis estreitos e contorcidos, Xisco nadou até uma câmara submarina e começou a recolher amostras de rochas. Guillem media o formato e o diâmetro de uma câmara próxima. Dali a cerca de uma hora, Xisco deu uma olhada nos medidores de pressão de ar e viu que seus tanques estavam um terço vazios. Cada um de nós tem ar suficiente para mais duas horas, duas horas e meia no máximo.

Xisco segurou Guillem pelo ombro e apontou os mostradores de pressão.

Estava na hora de ir embora.

Eles começaram a voltar pelo caminho por onde tinham chegado, seguindo o cordão pela água lamacenta com os sedimentos que tinham levantado no trajeto de ida. A princípio, a passagem era larga, mas, enquanto avançavam, as paredes se fecharam até os tanques de Xisco se arrastarem e se prenderem. O contato levantou ainda mais sedimentos, que giravam em torno deles como uma sopa grossa de chocolate.

De mão em mão, os dois mergulhadores seguiram o cordão branco até chegarem a uma parede de pedra, onde o cordão terminou de repente. Xisco tateou, procurando a próxima parte do cordão; nada.

Com gestos, instruiu Guillem a ir para uma caverna a uns 200 metros, onde ele lembrava que havia ar, e esperar. Xisco sabia que o ar da caverna não era perfeito – continha dióxido de carbono –, mas lá era o lugar mais próximo para esperar, e poupar o ar dos tanques era importante.

Xisco continuou procurando o cordão. Com a mão, ele tateou o vazio. Parecia que o pedaço de pedra onde o cordão fora fixado se quebrara. Ele descalçou as luvas e começou a tatear atrás do cordão na nuvem escura que regirava em torno dele. Nadou de um lado para o outro, as mãos tocando rocha e sedimento.

A visibilidade piorava a cada movimento.

Dali a algum tempo, Xisco deu uma olhada no regulador e se preocupou. Não percebera quanto tempo ficara procurando o cordão. Só temos uma hora de ar cada um, e ainda estamos a um quilômetro da saída, pensou. Mesmo que achemos o caminho certo, podemos ficar sem ar antes de chegar à superfície.

Xisco nadou para a caverna onde Guillem o aguardava. Quando tirou a cabeça da água, viu que estava num grande lago, numa câmara cavernosa com cerca de 80 metros de comprimento e 20 de largura. Além do lago, podiam ser vistas rochas pontudas, algumas subindo bastante acima da superfície da água.

Quando inspirou, percebeu imediatamente que o ar continha mais dióxido de carbono do que pensara. O teor era alto, talvez 2% ou 3%, muito acima dos 0,03% do ar comum. Ele também sabia que uma concentração tão alta de dióxido de carbono poderia ter consequências assustadoras: ritmo cardíaco acelerado, respiração rápida, dor de cabeça, alucinações, paralisia, inconsciência e morte.

Xisco e Guillem saíram da água e subiram nas rochas da câmara absolutamente escura.

– Há outra rota para a superfície, mas é um pouco mais longa. – Xisco apontou o caminho no mapa plastificado. – Os cordões devem estar intactos.

Guillem examinou os tanques.

– Só há ar suficiente para um de nós chegar à superfície – disse ele.

– Você é menor e mais rápido e usará menos ar para subir – sugeriu Xisco.

Além disso, Xisco passara muitos dias explorando câmaras submersas com ar saturado de dióxido de carbono e sabia desacelerar a respiração para reduzir a inalação de gases tóxicos.

Guillem se equipou com os tanques restantes. Enquanto Xisco observava o amigo desaparecer debaixo d’água.

Espero vê-lo de novo, pensou Xisco, inspirando rapidamente. Sentiu o pulso se acelerar, um dos primeiros sinais de envenenamento por dióxido de carbono. E rápido.

Eram quase seis horas da tarde de sábado.

Menos de uma hora depois, Guillem rompeu a superfície da água, arrancou o regulador da boca e inalou o ar limpo de Maiorca. Seus dedos tremiam enquanto ele ligava para os membros do Grup Nord, a organização oficial de exploração de cavernas da ilha.

Dali a uma hora, vários dos principais mergulhadores de cavernas tinham se reunido na escuridão crescente. Um deles era Bernat Clamor, com quase tanta experiência de mergulho quanto Xisco.

– Pode haver muito dióxido de carbono naquela caverna – disse ele. – Não sabemos quanto tempo ele tem.

O grupo concordou que dois mergulhadores familiarizados com a caverna iriam primeiro. Guillem marcou a localização de Xisco num mapa plastificado e o entregou aos homens antes de observá-los mergulhar.

Duas horas depois, eles retornaram com más notícias.

Na pressa para chegar à superfície, Guillem agitara a água a tal ponto que a visibilidade era quase zero. Era impossível ler as etiquetas que indicavam para onde ir quando um túnel se bifurcava.

– Vamos esperar a água clarear antes de mergulhar de novo – sugeriu Bernat.

Os sedimentos poderiam levar horas e até dias para se acomodar. Xisco poderia morrer sufocado respirando dióxido de carbono, mas Bernat sabia que mergulhar em água parecida com chocolate era inútil. Ele não queria pôr mais ninguém em risco. Não havia nada a fazer senão esperar.

Sentado na caverna escura, os minutos pareciam horas. Xisco estava tonto com o efeito do dióxido de carbono no ar. E seu relógio de mergulho tinha parado. Ele não fazia ideia de que só estava na caverna havia umas quatro ou cinco horas.

Um pavor insinuante tomou conta dele. Guillem morreu. Ninguém sabe onde estou.

Xisco acendeu a lanterna de cabeça, saiu da saliência onde estava empoleirado e foi até o lago. Com as mãos em concha, levou o líquido aos lábios. Embora quase toda a água da rede de cavernas fosse salgada, a camada superior deste lago era fresca e limpa. O ar, nem tanto. Xisco voltou com dificuldade a seu lugar de descanso, a única superfície plana da caverna, e gemeu quando uma pontada de dor o atingiu na têmpora. O dióxido de carbono tomava conta, e cada movimento ou respiração o fazia consumir mais.

Xisco deitou-se e tentou manter a calma.

Prometeu que só se mexeria para beber e urinar. Desligou a lanterna para poupar bateria e se deitou na escuridão úmida e fria.

Ele se perguntou se teriam avisado sua ex-mulher. Só um ano se passara desde a separação, e o divórcio fora arrasador para Xisco. Ela contaria às crianças? Os filhos estariam preocupados com ele naquele exato momento?

Seus pensamentos voltaram aos mergulhadores na ilha.

Eles logo me encontrarão, raciocinou. Assim espero.

Em terra, uma equipe de paramédicos estava a postos e havia um psicólogo à disposição. Mergulhadores e exploradores de cavernas da ilha debatiam o melhor rumo a tomar. “Fizemos uma tentativa, e ninguém consegue avançar mais de trezentos metros”, explicou Bernat a dois novos mergulhadores no local. “A água parece lama.”

Enquanto isso, policiais locais e nacionais armavam tendas e barricadas para manter a multidão crescente de repórteres a distância. O diretor-geral de emergências das ilhas Baleares estava ali, mas agora o resgate era encabeçado por um membro da Guarda Civil, o oficial no comando do Grupo Especial de Atividades Subaquáticas de Maiorca. Depois de escutar vários policiais e mergulhadores, ele deu a ordem:

Xisco, à esquerda, com Guillem nas cavernas. Ambos continuam apaixonados pelo mergulho. MATIAS ALEXANDRO/Revista Seleções.

“Esperamos até amanhecer para voltar a mergulhar”, disse ele, e a resposta foi um coro de gemidos.

Todos sabiam o grande perigo que Xisco corria. Naquele mesmo minuto, ele poderia estar inspirando a última dose de ar venenoso que seu corpo conseguiria aguentar.

Eram 21h30 de domingo, e Xisco estava sob a terra havia mais de 30 horas. Quando o grupo se dispersou, um mergulhador, zangado, murmurou entre dentes: “Amanhã será tarde demais.”

Uma luz tremulou acima do lago subterrâneo. 

Xisco sentou-se. A cabeça girou com o movimento súbito. A bateria da lanterna de cabeça por fim se esgotara, e a escuridão parecia quase cegar.

O que era aquele som gorgolejante? Haveria alguém ali com ele? Ele escutou de novo: silêncio.
Xisco se deitou outra vez na pedra úmida e respirou de leve.

Estou tendo alucinações, pensou. O dióxido de carbono saturou meu sangue. Ninguém virá me salvar.

Ele pensou nos filhos, na mãe, na cunhada, que estava morrendo de câncer. Pensou no canivete na bolsa do equipamento. Se o gás não me matar, posso resolver isso sozinho.

“Finalmente!”, exclamou Jhon Freddy Fernandez, apressando-se para vestir a roupa de mergulho. Amigo de Xisco, ele esperara mais de 24 horas por sua vez de participar da busca. Agora, pouco antes do meio-dia de segunda-feira, veio o chamado.

Quando começou a nadar pelo primeiro túnel, o coração de Freddy se alegrou. A água estava limpa. Não transparente, mas o bastante para ver as etiquetas. Ele se pôs a trabalhar: cortar todos os cordões, a não ser o que levava a Xisco. Ele agia depressa. Duas horas depois, saiu da caverna sorrindo.

“Cheguei quase lá”, informou Freddy à equipe reunida. “O próximo mergulhador conseguirá alcançá-lo.”

Bernat pulou de pé e pegou seus tanques. Em minutos, estava na água. Com um único cordão branco para seguir, ele avançou pelo labirinto subterrâneo diretamente até a câmara onde estava Xisco.

Devo estar bem perto, pensou Bernat, depois de cerca de uma hora debaixo d’água. A prioridade agora era verificar se Xisco estava vivo e que tipo de missão de resgate seria aquela, afinal.

Este será meu túmulo, pensou Xisco. 

Mais uma vez, ele ouviu o som de bolhas, como um mergulhador emergindo. Então uma luz começou a dançar no teto da caverna.

– Xisco, Xisco! – ouviu chamarem e virou a cabeça. Então viu o amigo Bernat, escorrendo água e andando em sua direção. Os dois se abraçaram.

– Guillem está morto, não está? – Não, está vivo, à sua espera na superfície! – disse Bernat.

Ele deu a Xisco um pouco de gel energético de glicose, e os dois conversaram até Bernat ter certeza de que o amigo estava em condição de fazer o percurso de volta.

– Vou retornar para avisar que você está vivo. Os próximos mergulhadores lhe trarão ar e o tirarão daqui – explicou Bernat. – Pode esperar mais um pouco?

– Agora que sei que estou salvo, posso esperar o dia todo! – disse Xisco.

Quatro horas depois, por volta das 20 horas de segunda-feira, Hilari Moreno Moya e Enrique Ballesteros, ambos amigos de Xisco, emergiram na caverna.

Eles levaram tanques cheios de Nitrox, gás que tem o dobro de oxigênio do ar comum. Xisco inspirou a mistura potente e sentiu o corpo voltar à vida. A cabeça começou a clarear, e ele conseguiu inspirar profundamente pela primeira vez em 58 horas.

Xisco sorriu para os dois amigos.

– Estou pronto para ir.

Sessenta horas depois de entrar na Cova de Sa Piqueta, às 23h10 da segunda-feira, Xisco saiu andando sem ajuda da boca da caverna. Os vivas alegres da multidão o receberam.

Guillem, que estava entre os que esperavam, abriu um sorriso ao ver Xisco. Ele estava vivo!

Homenagem

Uma tradição do Grup Nord é que o primeiro mergulhador a explorar uma nova caverna pode batizá-la. Hoje, a câmara onde Xisco e Guillem se refugiaram é chamada de Sala dos Três Milagres, nome dado por Xisco. O primeiro milagre foi Xisco ter encontrado uma câmara com ar. O segundo, ter sobrevivido com tanto dióxido de carbono. E o terceiro, ter sido capaz de escapar com vida dessa situação apavorante.

POR LIA GRAINGER