Geleiras internas

Embora aparentemente voltado para o público miúdo, este livro fala muito sobre os adultos que preferem entulhar a geladeira de sentimentos não ditos.

Redação | 9 de Dezembro de 2018 às 14:12

Ilustração © RODRIGO BIXIGÃO; © ISTOCK/Revista Seleções -

Mais um papo de livro com a colunista Claudia Nina. Ela é jornalista e escritora, autora, entre outros, de Paisagem de porcelana (Rocco). Confira:

O que faz um coração empedrar-se? Que motivos secretos transformam as emoções em geleiras? Há mais mistérios e sintonia entre o mundo dos sentimentos e as estações do que se pode imaginar. As paisagens de dentro também sofrem com as intempéries – da alma. Existem aqueles que são solares, parecem carregar um pequeno sol por onde caminham. São naturalmente alegres, radiantes. Mas, em contrapartida, quem já não topou com as pessoas que carregam a dor do mundo nos ombros, que são arredias às luminescências de qualquer espécie?

Antes de culpá-los por não irradiarem a si mesmos, há que sondar os seus profundos subterrâneos. Em algum canto, as geleiras se escondem. É mais ou menos isso que mostra esta singela história chamada Coração de inverno, coração de verão. “Mas ninguém desconfiava que, a todo instante, rajadas gélidas e barulhentas atravessavam seu coração indefeso. Lufadas de saudade da voz do pai, sopros de saudade do colo da mãe, que o faziam chacoalhar no mais doido silêncio”, diz o texto.

Quantas emoções não choradas a gente guarda em nossas geleiras?

Este trabalho, embora aparentemente voltado para o público infantil, fala muito sobre adultos que preferem entulhar a geladeira de sentimentos não ditos, que vivem anos silenciando coisas guardadas e que não tiveram a sorte do encontro final desta história.

Me lembrei de um caso. Era um homem arredio à própria família que construiu. Os filhos só sabiam para onde iam nos fins de semana – praia ou rua – quando ele saía do quarto depois de se vestir. Se ele estivesse de bermuda, iam para a praia; se estivesse de calça, fariam alguma coisa pela rua mesmo. A mulher consentia com o pacto do silêncio porque não havia aprendido a quebrar a geleira. Temia uma avalanche.


Quando sondaram os mistérios daquele homem, encontraram um menino acuado.


Viviam ao redor do silêncio enregelante do pai. Os filhos passaram a infância e a adolescência em pleno “inverno” permanente até que cada um foi buscar o seu lugar ao sol. A mulher morreu logo depois, não suportou o ninho vazio e gelado.

Quando alguém sondou os mistérios daquele homem, encontrou um menino acuado em um canto, silencioso, com uma bola de futebol furada nas mãos. O pai, muito enérgico, tinha proibido o jogo, que era a maior alegria do garoto com os vizinhos do bairro. Era de um tempo em que os meninos jogavam na rua, não havia carro suficiente para atrapalhar, ainda mais na cidade pequena onde moravam.

O garoto desobedeceu a ordem e continuou jogando, alheio ao grito do pai de “Já para dentro!”. O castigo foi uma surra. Não propriamente uma surra física, mas uma surra moral. O pai pegou uma faca gigante e retalhou a bola – tinha sido presente de um tio.

Coração de inverno, coração de verão, de Letícia Sardenberg (Zit).

Não houve choro. O que a mãe de pronto estranhou. O menino calou-se para sempre. Nas mais altas montanhas, exilou seu ranger de dentes. E passou a viver um inferno eterno…

A que estranhos caminhos nos levam uma boa história.


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Por CLAUDIA NINA