O filho das gentes

Confira a análise do livro "Antes que Deus me esqueça", de Alex Andrade, feita pela jornalista e escritora Cláudia Nina.

Redação | 19 de Novembro de 2018 às 19:00

AlexLinch/iStock -

A literatura tem muitas vezes mais formas de revelar as penumbras da realidade social do que os livros teóricos. Pena que se leia tão pouca ficção de boa qualidade no Brasil. E por boa qualidade se entende: compromisso com a linguagem, com a apresentação dos personagens e com a construção de um enredo sólido, mesmo quando este é esfarelado. Quem não percorre as ruelas dos textos contemporâneos pode dizer que faz tempo que os autores não mergulham no social, como fizeram no começo dos anos 1990. Isso não é verdade, e trabalhos interessantes aparecem para provar o contrário. Exemplo é Antes que Deus me esqueça, de Alex Andrade.

O livro conta a história de Joaquim:

“Nas redondezas, todos sabiam onde era a nossa casa, quem era quem e o que acontecia por detrás daquela porta quando a lamparina se acendia. Não era mistério para ninguém o que se fazia entre aquelas paredes. O famoso sobrado azul, ponto de encontro de muitos homens casados e de rapazes em total ebulição. (…) Eu era filho dessa gente, criado no meio da orgia, o menino de cor que vivia chorando na hora do recreio da escola, quando as outras crianças zombavam, perguntando quantos pais eu tinha.”

Os jornais, as revistas e os noticiários vão até um ponto, os tratados e as teses fazem o resto. Mas a ficção consegue criar o que nenhum outro registro faz ao elevar o imaginário a uma categoria de realidade maior, mais eloquente, seja na euforia ou no mais árido sofrimento, como é o caso aqui. Fiquei imaginando este livro no cinema. Seria um filme e tanto. A micro-história do país, ali concentrada no drama do menino e depois adulto descrente, para quem Deus o havia expulsado de Suas crenças, precisa ser revelada para o grande público porque, no dentro do dentro, onde está a miséria profunda “das gentes”, o Brasil ainda é um mistério.

Mais um pequeno trecho:

“Na minha cabeça, depois que os meninos da escola disseram que meu pai era todos os homens que frequentavam o bordel, eu passava noites e mais noites procurando por ele. A qualquer momento, ele há de surgir, pensava. Meu pai poderia ser um poeta, um açougueiro, poderia ser apenas ele mesmo.”

A capacidade de criar um mundo tão real, descrito em detalhes, cravando a palavra na emoção dos personagens, é um dos fatores que fazem a literatura ir além dos fatos. E pensar que não são personagens imaginários; são duplos de pessoas de carne e osso que vivem a miséria nossa de cada dia e se espalham pelos sobrados de qualquer cidade, como a casa que o autor faz surgir no seu texto.

Fica o convite à leitura e ao mergulho na penumbra de Joaquim – o filho das gentes.

Título: Antes que Deus me esqueça

Autor: Alex Andrade

Editora: Confraria do Vento

Por Claudia Nina, jornalista e escritora. Autora, entre outros,
de Paisagem de porcelana (Rocco)

Leia também a ficção de Cláudia Nina na coluna: Histórias que a vida conta