Mistério médico: Por que um sintoma só?

Alguns casos intrigam até mesmo os médicos mais experientes. Confira um mistério médico que intrigou os especialistas.

Redação | 1 de Novembro de 2020 às 01:02

Ilustrado por Victor Wong -

Alguns casos intrigam até mesmo os médicos mais experientes. O caso médico abaixo certamente está nessa lista de mistérios médicos que intrigam os especialistas.

PACIENTE: Sushma, voluntária comunitária de 51 anos (nome alterado para proteger a identidade)
SINTOMAS: Voz fraca
MÉDICA: Dr. Avinash Chandra, neurologista do Instituto Annapurna de Neurologia e Ciências Afins em Katmandu, no Nepal

Sushma morava com o marido e a filha adolescente numa cidadezinha rural nepalesa, onde mantinha a agenda cheia organizando festas e cantando no coral. Com 51 anos, nunca tivera nenhum problema grave de saúde.

No fim do verão de 2019, Sushma notou uma mudança na voz, que ficava cada vez mais fraca e rouca no decorrer do dia. Ela não sentia dor, e a voz voltava ao normal ao acordar de manhã. Mas, depois de vários dias com o mesmo problema, ela decidiu ir ao médico.

Os clínicos gerais são raros em boa parte do Nepal. Quando têm um problema de saúde, os pacientes escolhem um especialista, dependendo do que acham que está errado. Como pensou que tinha uma infecção de garganta, Sushma consultou um otorrinolaringologista. Ele concordou que os sintomas de Sushma poderiam ser causados por infecções ou alergias e receitou antibióticos e antialérgicos.

Mas a voz de Sushma enfraqueceu ainda mais nos dias subsequentes. A família tinha dificuldade de entender o que ela dizia. Sushma começou a se preocupar. E se a causa fosse grave? E se não pudesse mais cantar nem falar nas reuniões da comunidade? Ansiosa, Sushma voltou à clínica e pediu outro otorrino.

Em busca de uma segunda opinião 

Esse outro médico recomendou uma laringoscopia, exame em que um tubo fino com uma câmera é inserido na garganta para verificar se algum tecido anormal está interferindo com a função das cordas vocais. O exame só estava disponível em Katmandu, a 400 quilômetros dali, onde, felizmente, Sushma e a família tinham um parente que poderia hospedá-las. Assim, doze dias depois do início da voz fraca, eles fizeram a longa viagem de ônibus.

Lá, um otorrino realizou a laringoscopia, mas não achou nada fora do normal. Ele teorizou que ela pudesse ter alguma paralisia do nervo que controlava as cordas vocais. Mas, para esse tipo de problema, ela teria de ser avaliada por um neurologista.

Dois dias depois, Sushma foi ao Instituto Annapurna de Neurologia e Ciências Afins. O Dr. Avinash Chandra recorda: “Quando Sushma falou comigo pela primeira vez, foi com voz baixíssima. Perguntei se não poderia falar mais alto, e a filha respondeu: ‘Não, doutor, esse é o problema!’”

Chandra descartou a paralisia do nervo, pois a voz de Sushma flutuava da manhã à noite; achou mais provável que fosse um problema neurológico mais generalizado. Como não havia outros sintomas, era difícil identificar, mas ele desconfiou de doença de Parkinson por algumas razões: é mais comum do que a maioria das outras doenças degenerativas do sistema nervoso; surge na meia-idade; e torna a voz mais baixa.

“A maior preocupação dela era perder a voz para sempre”, conta o Dr. Chandra. “Eu lhe expliquei que havia remédios para ajudar, mas ela temia a progressão da doença.”

As outras duas possibilidades eram esclerose lateral amiotrófica (ELA), uma degeneração gradual dos neurônios que controlam o movimento, e miastenia grave, doença autoimune em que anticorpos anormais atacam a parte do músculo que recebe os sinais nervosos. Esta última pode afetar os músculos dos braços e das pernas, mas, em cerca de 15% dos casos, começa com fraqueza no rosto e na garganta. Ambas são mais raras do que a doença de Parkinson, e normalmente a fraqueza da voz não seria o único sintoma, mas o avô de Sushma tivera dificuldades musculares e respiratórias inexplicadas antes de morrer, e poderia haver ELA na família.

Chandra fez exames, inclusive uma ressonância do cérebro, mas tudo parecia normal; nenhum sinal das lesões associadas à ELA. “Eu ainda pensava em Parkinson”, diz ele.

Embora não haja exame diagnóstico específico para a doença de Parkinson, há um exame de anticorpos para eliminar a miastenia. Mas o resultado podia levar dez dias ou mais para chegar, pois as amostras de sangue de Sushma teriam de ser enviadas à Índia. “A espera do laudo é arrasadora para o paciente”, informa Chandra. Ele já vira a angústia causada por essa demora.

Em busca de um tratamento

Assim, pediu o exame, mas também deu um passo para obter respostas mais depressa. “No Nepal, fazemos as coisas de um modo diferente dos outros países porque não temos os mesmos recursos”, explica o médico. A assistência à saúde recebe poucos recursos, e o acesso limitado à tecnologia pode ter consequências terríveis; muitas doenças tratáveis estão entre as maiores causas de morte. “Às vezes, experimentamos o remédio para uma doença”, diz Chandra. “Não é muito baseado em evidências, mas, se causar o efeito desejado, isso reforça o diagnóstico.”

Na tarde seguinte, ele deu a Sushma uma dose de neostigmina, medicamento usado no tratamento da miastenia grave, e a instruiu a esperar uma hora no pronto-socorro do hospital, onde seria monitorada caso surgissem efeitos colaterais graves. Dali a meia hora, a filha veio correndo, chamando o médico. A voz da mãe melhorara de repente. A miastenia grave é uma doença raríssima que só afeta quatro em cada dez mil pessoas. Mas, se Sushma tivesse doença de Parkinson, sua voz não reagiria ao medicamento.

Agora, Sushma tinha uma resposta provável. “Fiquei contente porque ela obteve o diagnóstico que muitos outros médicos não conseguiram fazer. Mas fiquei contente por outro motivotambém”, continua Chandra. “Os remédios para a doença de Parkinson são caríssimos neste país.” Os medicamentos para miastenia grave são mais baratos.

Sushma começou o tratamento regular depois que o exame de anticorpos veio positivo. Em uma semana, a voz melhorou, e a família dela ficou impressionada com o trabalho de Chandra. “Eles trouxeram outros parentes com todo tipo de doença e me disseram: ‘Você é um bom médico!’”, conta ele, rindo. “Com uma sintomatologia tão rara, estou felicíssimo por ter conseguido diagnosticar Sushma.”