Placebo: o poder das pílulas falsas

O placebo pode ajudar você com algumas dores e com a ansiedade mesmo sabendo que são placebos. Sem mentir, os comprimidos podem trazer o alívio necessário.

Redação | 26 de Novembro de 2018 às 22:00

milosducati/iStock -

“Aqui estão”, disse John Kelley, pegando um saco de papel da escrivaninha e tirando um grande frasco marrom. Ali dentro estavam os comprimidos que tínhamos inventado: uma mistura mágica criada para tratar meu bloqueio criativo crônico e as crises de pânico e a insônia que sempre o acompanhavam.

Eu conheço Kelley desde a faculdade. Hoje ele é professor de psicologia do Endicott College, em Massachusetts, e vice-diretor do PiPS, Programa de Estudos sobre Placebo e Encontro Terapêutico de Harvard. É o primeiro programa do mundo dedicado ao estudo interdisciplinar do efeito placebo.


Onde os placebos “abertos” são promissores

Boa parte da pesquisa sobre a eficácia dos placebos de rótulo aberto foi realizada por Ted Kaptchuk e seus colegas, com resultados promissores em várias doenças:

Síndrome do intestino irritável:
Os participantes do estudo que tomaram diariamente dois comprimidos de placebo relataram melhora dos sintomas em apenas 11 dias – mais do que os que continuaram o tratamento costumeiro (como fibras ou antiespasmódicos). Em outra pesquisa, 44% dos pacientes que receberam falsa acupuntura para a síndrome do intestino irritável melhoraram. O número pulou para 62% quando o acupunturista era simpático e solidário.

Dor lombar crônica:
Os pacientes que tomaram comprimidos claramente rotulados como placebo duas vezes por dia relataram maior redução da dor e da incapacidade quando comparados aos que apenas continuaram o tratamento costumeiro (em geral, com anti-inflamatórios não esteroides e outros analgésicos).

Enxaqueca:
Quem tomou placebo (rotulado como tal ou como medicamento) sentiu redução da dor semelhante à de quem tomou remédios.

Fadiga causada pelo tratamento do câncer:
Quem tomou pílulas de placebo duas vezes por dia relatou melhora de 29% no nível de fadiga, contra os 23% declarados por quem tomou medicamentos ou tratou a fadiga de outra maneira.


A palavra placebo se refere a um remédio falso que se passa por fármaco verdadeiro ou, em termos mais amplos, qualquer tratamento falso apresentado como real. Por definição, o placebo é uma fraude, uma mentira. Mas os médicos o ministram há séculos, e os pacientes melhoram, seja pelo poder da crença, seja por sugestão – ninguém sabe ao certo. Até nos dias de hoje, quando o uso de placebos é considerado antiético por muitos profissionais da Saúde, uma pesquisa com 679 médicos mostrou que cerca de metade deles prescreve medicamentos como vitaminas e analgésicos principalmente por seu valor como placebo.

Placebos de rótulo aberto

O interessante é que os pesquisadores do PiPS descobriram que o placebo funciona bem até quando o médico não tenta enganar o paciente. São os chamados placebos de rótulo aberto, explicitamente receitados como placebos.

Assim, recorri a meu velho amigo para me ajudar com o bloqueio criativo.

– Acho que podemos criar um comprimido para isso – começou ele. – Vamos ajustar seu remédio criativo para que tenha a máxima eficácia: cor, formato, tamanho, dose e tempo antes de escrever. Que cor você associa a escrever bem?

Fechei os olhos.

– Dourado.

– Acho que o farmacêutico não consegue fazer cores metálicas. Terá de ser amarelo.

Nas semanas seguintes, discutimos meu tratamento com mais detalhes. Kelley sugeriu cápsulas em vez de comprimidos, pois pareceriam mais científicas e, portanto, teriam efeito mais forte. Também as fez com ação rápida: ele acreditava que o limite de duas horas reduziria minha tendência a procrastinar. Compusemos um conjunto de instruções que tratava não só de como tomá-las mas também do que elas fariam. Por fim, encomendamos as cápsulas, que custaram caro: 405 dólares, embora só contivessem celulose. O seguro-saúde não cobre placebos.

Kelley me tranquilizou: “O preço aumenta a sensação de valor. Assim elas funcionarão melhor.”


Os placebos de rótulo aberto parecem um mágico que explica a ilusão enquanto faz o truque.


Liguei para a farmácia para pagar com o cartão de crédito. Depois da transação, o farmacêutico falou:

– Tenho de explicar aos clientes o modo correto de tomar o medicamento, mas, francamente, não sei o que lhe dizer sobre este.

– Meu palpite é que não há superdosagem.

– É verdade.

– Mas será que posso ficar viciado?

– Ora, ora, essa é uma pergunta interessante.

Rimos, mas me senti inquieto. O rótulo aberto começava a parecer um daqueles programas pós-modernos em que o mágico explica a ilusão enquanto faz o truque – só que não havia mágico. Os pacientes é que inventavam ao longo do tratamento.

A empatia do cuidador

Um dos principais elementos do efeito placebo é o modo como nossa expectativa configura a experiência. Quando me entregou as cápsulas, Kelley quis aumentar o máximo possível
minha expectativa, como dizem os psicólogos. Ele me mostrou o material de aparência bastante séria que vinha com as cápsulas amarelas: o frasco, o rótulo, a receita, o recibo da farmácia e a folha de instruções que tínhamos escrito juntos e que ele leu em voz alta. Depois, quis saber se eu tinha alguma pergunta.

De repente, estávamos conversando sobre meu medo de fracassar como escritor. Era tranquilizador ouvir Kelley responder com seus modos gentis. No fim das contas, esse é outro elemento importante do efeito placebo: a empatia do cuidador. A força curativa, ou seja lá como se chama, passa pelo placebo, mas começar com uma pessoa, alguém que deseja que você melhore, ajuda.

Sabendo de tudo

Em casa, sentei-me à mesa de jantar com um copo d’água e um caderno. Tome duas cápsulas com água dez minutos antes de escrever, dizia o rótulo. E embaixo: Placebo. Venda com receita médica.

Desdobrei a bula: Este placebo foi projetado especialmente para você, para ajudá-lo a escrever com mais liberdade, espontaneidade e naturalidade. O objetivo é reduzir a ansiedade e a insegurança que às vezes agem como entrave para sua autoexpressão criativa. A expectativa positiva é útil, mas não essencial. É natural ter dúvidas. Ainda assim, é importante tomar as cápsulas corretamente, de acordo com as instruções, porque estudos anteriores mostram que a obediência ao regime de tratamento aumenta o efeito do placebo.

Engoli duas cápsulas e depois, seguindo as instruções, fechei os olhos e tentei explicar a elas o que queria que fizessem. Tive medo de que minha ansiedade por não saber se dariam certo impedisse que funcionassem.

Nos próximos dias, senti meu nível de ansiedade disparar no trabalho e enquanto eu preenchia os formulários sobre meu tratamento. Numa escala de 0 (zero) a 10, na qual 0 é nenhuma ansiedade e 10 é a pior ansiedade que você já sentiu, dê uma nota à ansiedade que sentiu na sessão de hoje. Eu estava me dando nota 8 por uma noção inadequada de contenção, embora quisesse me dar 10. Então, certa noite, na cama, meus olhos se abriram. Meu coração batia forte. O relógio marcava três da madrugada. Levantei-me, sentei-me na poltrona e, como o frasco de cápsulas estava ali na escrivaninha, tomei duas, só para me acalmar. Com elas, realmente me senti um pouco melhor. Pela manhã, mandei um e-mail para Kelley, que respondeu dizendo que, como qualquer medicamento, o placebo pode levar algumas semanas para se acumular no organismo até atingir a dose terapêutica.

O chefe

Ted Kaptchuk, chefe de Kelley e fundador e diretor do PiPS, percorreu um caminho excêntrico. Ele se envolveu na política radical da década de 1960 e estudou medicina chinesa em Macau. De volta aos Estados Unidos, praticou acupuntura em Cambridge, Massachusetts, e teve uma clínica da dor antes de ser contratado pela Escola de Medicina de Harvard. Mas não é médico, e o diploma que tirou em Macau não é reconhecido nos EUA.

Essa situação de Kaptchuk lhe deu enorme liberdade intelectual. No mundo especializadíssimo da medicina acadêmica, ele rotineiramente atravessa os limites entre pesquisa clínica, história da medicina, antropologia e bioética. “Harvard me contratou para fazer pesquisas sobre medicina chinesa”, conta ele. Seu interesse mudou quando Kaptchuk tentou conciliar o sucesso como acupunturista com as queixas dos colegas sobre a falta de evidências científicas irrefutáveis. “Em um momento da pesquisa, perguntei a mim mesmo: ‘Se a comunidade médica supõe que a medicina chinesa é um placebo, por que não examinamos esse fenômeno mais profundamente?’”

A acupuntura

Alguns estudos tinham constatado que, quando a acupuntura é realizada com agulhas retráteis ou laser ou quando as espetadelas são feitas no lugar errado, mesmo assim o tratamento funciona. Pelos padrões convencionais, isso faria da acupuntura uma fraude.

Quando um medicamento não tem resultado melhor do que o placebo, ele é considerado ineficaz. Mas, nos estudos de acupuntura, Kaptchuk se espantou com o fato de que os pacientes do grupo de tratamento falso estavam mesmo melhorando. Ele ressalta que o mesmo acontece com muitos fármacos. Em experimentos com pacientes no pós-operatório, por exemplo, os analgésicos receitados perderam metade da eficácia quando o paciente não sabia que o remédio que acabara de tomar era um analgésico. Um estudo do rizatriptano, medicamento para enxaqueca, não constatou diferença estatística entre o placebo rotulado como rizatriptano e o rizatriptano verdadeiro rotulado como placebo.

O que Kaptchuk encontrou foi algo parecido com um ponto vazio no mapa. “Na pesquisa médica, todos sempre perguntam: ‘Funciona melhor do que o placebo?’ E fiz a pergunta óbvia que ninguém fazia: ‘O que é um placebo?’ E percebi que ninguém jamais falava disso.” No trabalho com Kelley e outros colegas, ele descobriu que o efeito placebo não é um fenômeno único, mas um grupo de mecanismos relacionados. É provocado não só por fármacos falsos, mas pelos símbolos e rituais da própria assistência médica – da picada da injeção à visão de uma pessoa de jaleco branco.

Como funciona?

Antes de mais nada, os efeitos não são apenas imaginários, como já se pensou. Os exames de ressonância magnética funcional, que mapeiam a atividade cerebral registrando pequenas mudanças do fluxo sanguíneo, mostram que os placebos, como os fármacos verdadeiros, provocam a produção de substâncias neuroquímicas como endorfinas e dopamina e ativam áreas do cérebro associadas à analgesia e a outras formas de alívio sintomático. “Ninguém acreditaria na minha pesquisa sem a neurociência”, disse Kaptchuk. “Perguntam: ‘Como o placebo funciona?’ Tento explicar que é por rituais e símbolos, mas insistem: ‘Não, como funciona de verdade?’ E digo ‘Ah, sabe, dopamina’ – e aí eles aceitam.”

Para entender melhor a fisiologia, o PiPS começou a patrocinar pesquisas sobre a genética da resposta ao placebo. Depois de me encontrar com Kaptchuk, atravessei a cidade até a Divisão de Medicina Preventiva do Brigham and Women’s Hospital para visitar a geneticista Kathryn Tayo Hall. Ela estuda o gene da catecol-O-metiltransferase (também chamada de COMT), uma enzima que metaboliza a dopamina. Isto é, num estudo, ela verificou que o tipo de enzima COMT dos pacientes parecia determinar se o placebo funcionaria neles.

O gene COMT será o “gene do placebo”? A geneticista logo pôs seus achados no contexto. “A expectativa é que o efeito placebo seja um nó que envolve muitos genes e fatores biossociais”, afirma ela, não só o COMT.

Pessoas preocupadas e pessoas guerreiras

Há outra questão, ressalta ela. Os preocupados – pessoas com nível elevado de dopamina – apresentam mais atenção e memória, mas também mais ansiedade, e não lidam bem com o estresse. Já os guerreiros – pessoas com nível mais baixo de dopamina – apresentam menos atenção e memória em condições normais, mas sua capacidade aumenta sob estresse. Portanto, o componente placebo combina com os tipos de personalidade preocupada/guerreira, como seria de esperar: os preocupados tendem a ser mais sensíveis ao placebo; os guerreiros, menos.

Timidamente, contei a Kathryn minha experiência de um só homem com o placebo, sem saber como ela reagiria. “Brilhante”, disse ela. E me mostrou uma caixa de comprimidos homeopáticos que toma para reduzir a dor no braço causada por uma antiga lesão. “Meu placebo. É a única coisa que funciona.”

Qual será o futuro dos placebos?

Acima de tudo, Kaptchuk diz que um dia os médicos prescreverão aos pacientes placebos para tratar determinados sintomas sem o custo e os efeitos colaterais dos fármacos reais. Da mesma forma, outros pesquisadores se concentram na capacidade do placebo de ajudar pacientes com sintomas difíceis de tratar. Assim como náusea e dor crônica. Outros ainda falam em tornar os tratamentos médicos convencionais ainda mais eficazes usando os símbolos e rituais da assistência médica. Assim como levar uma injeção dada por alguém de jaleco branco para acrescentar o efeito placebo.

Contudo, Kathryn Hall gostaria que a pesquisa do placebo resultasse numa medicina mais individualizada. Ela, por exemplo, acredita que isolar um marcador genético permitiria aos médicos ajustar o tratamento ao nível de sensibilidade a placebo de cada paciente. Ao citar a pesquisa que mostra que a empatia do cuidador é fundamental, Kelley espera redirecionar nossa atenção para o relacionamento entre paciente e cuidador, lembrando-nos do poder curativo da bondade e da compaixão.

O placebo prescrito

De fato, depois de tomar minhas pílulas mágicas durante 15 dias, as cápsulas criativas pareceram fazer efeito. Verifiquei que minhas frases eram lentas e esquisitas e que desgostava delas tanto quanto antes, mas não as joguei fora. Afinal, não queria admitir isso nos relatórios que preenchia, folhas cheias de anotações como “Mordi os dedos em vez de apagar”. Dessa forma, quando a ânsia de apagar meu trabalho ficava avassaladora, eu pegava mais duas cápsulas e as engolia. Apesar de estar muito acima da dosagem. Por fim, “Não preciso acreditar em vocês”, disse-lhes, “porque vão funcionar de qualquer forma.”

Certa noite, minha filha de 12 anos não conseguia dormir. Estava nervosa com algo que acontecera com colegas na escola: conversamos a respeito, tentando descobrir a melhor maneira de ajudar. Mas eu sabia que ela precisava descansar.

– Quer um placebo? – perguntei.

Sem dúvida, ela pareceu interessada.

– Como o que você toma?

Não apenas peguei o frasco, como também fiz o que John Kelley fizera comigo em seu consultório: expliquei as provas científicas e lhe mostrei o rótulo impressionante.

– O placebo ajuda muita gente. Ele me ajudou e vai ajudar você.

Por fim, ela pegou duas cápsulas amarelo-vivo e, em poucos minutos, estava profundamente adormecida.

Aliás, em pé à porta, coloquei mais duas cápsulas na palma da mão. Joguei-as na boca e voltei ao trabalho.

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Por ROBERT ANTHONY SIEGEL da REVISTA SMITHSONIAN

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