Sobre as vidas invisíveis e o livro de Martha Batalha

Confira a coluna do escritor Lucas Rocha sobre o livro de estreia da escritora Martha Batalha, "A Vida Invisível de Eurídice Gusmão".

Lucas Rocha | 24 de Novembro de 2020 às 13:32

Ponomariova_Maria/iStock -

Por esses dias terminei de ler A vida invisível de Eurídice Gusmão, livro de estreia da escritora recifense Martha Batalha. O livro, curto e cheio de reflexões, narra não só a vida da personagem do título, mas também a de outras personagens que viveram na classe média do Rio de Janeiro, lá nos anos 1940. Também foi adaptado para o cinema, mas ainda não assisti ao filme. Provavelmente farei isso no fim de semana.

Como o próprio nome sugere, esse é um livro sobre invisibilidade.

Sobre como as mulheres, cheias de potencial e de sonhos muitas vezes não realizados, acabavam se restringindo aos cuidados da casa, dos filhos e do marido, esquecendo-se de ser protagonistas de suas próprias vidas.

Mas essas mulheres possuíam histórias, e o grande triunfo de Martha Batalha é o de dar voz e centralidade a elas, mostrando sua complexidade dentro de um mundo que parecia simples a quem via de fora, assim como suas angústias, seus talentos, seus sonhos, seus desejos e segredos.

Acho que vidas aparentemente invisíveis existem até hoje, de homens e de mulheres, mas faço questão de enfatizar o aparentemente porque tenho certeza que são vidas interessantes. O que diferencia a vida banal de uma vida complexa é a nossa disposição para ouvi-la.

Porque, quando sentamos para ouvir histórias de pessoas mais velhas, é quase certo que terminamos fascinados. Se não com suas vidas, com sua habilidade de lembrar e nos contar como foi ter vivido até aqui.

Somos povos de tradição oral. Nossas narrativas ancestrais foram passadas através dos relatos dos mais velhos, modificando-se à medida que percorriam as gerações.

Chegaram até nós, hoje, com aquele gostinho de história de avó contada na mesa da cozinha, com café passado no coador de pano e bolo de fubá quentinho. Mas, em algum momento dessa confusão chamada vida, acabamos perdendo o hábito de ouvir.

Passamos tempo demais consumindo narrativas planejadas, correndo para ler os últimos livros, ler os últimos filmes, ouvir as últimas músicas e estar a par de todas as novidades que a cultura pop lança, minuto após minuto.

Mas precisamos voltar a ouvir. E fiz muito isso durante a pandemia.

Trabalho como bibliotecário, e uma das estratégias para manter o contato com o público onde trabalho se deu através de um projeto de mediação de leitura por telefone com idosos, onde toda a semana ligo para alguns deles, conto uma história, pergunto como foi a semana, e — a parte mais importante — ouço.

Talvez por isso o livro de Martha Batalha tenha gerado uma impressão tão forte em mim. Me peguei pensando que Eurídice é como tantas outras senhoras e senhores que tiveram suas vidas cheias de sonhos, conquistas e desejos. Vidas essas que hoje, para nós, parecem invisíveis simplesmente porque não temos o hábito de parar por alguns minutos para ouvir.

Então ouça. Ouça as histórias das pessoas que vieram antes de você, pergunte como era viver em uma época sem streaming, sem locadora, sem shopping, sem internet, sem brinquedos caros ou jogos eletrônicos.

Conheça autores brasileiros que
escreveram sobre o Brasil.

Ouça enquanto as histórias se enrolam umas nas outras, e o que começa como um causo subindo em uma mangueira passa pela história de um beijo que vira um braço quebrado e subitamente volta para a vitória com uma manga espada rosadinha, porque é assim que histórias orais funcionam e por isso são tão fascinantes.

E, se você for o protagonista dessas histórias que julga pouco importantes, não as deixe morrer. Conte suas histórias, seja pelo telefone, pelos áudios de WhatsApp ou nos almoços de amigos e família.

Compartilhe com o mundo o que aconteceu com você, faça as pessoas rirem, faça-as pensar no que têm hoje e como era o mundo no passado. Tenho certeza que a impaciência da atualidade, aos poucos, vai dar lugar a atenção, e todos vão ouvir o que você tem a dizer.

Façamos mais esse exercício e dispensemos a invisibilidade. Ela só é bonita como título de livro mesmo. Porque, no fim das contas, todos nós somos contadores de histórias, e todos temos histórias para contar.

POR LUCAS ROCHA


A vida invisível de Eurídice Gusmão

Escrito por Matha Batalha e publicado pela Companhia das Letras.