Saúde mental do povo negro e os efeitos do racismo

O suicídio de jovens negros é 45% maior do que o de jovens brancos, segundo dados do Ministério da Saúde. Esse é apenas um dos efeitos do racismo na saúde

Thaynara Firmiano | 3 de Setembro de 2020 às 11:00

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O suicídio de jovens negros é 45% maior do que o de jovens brancos, segundo dados do Ministério da Saúde. Esse é apenas um dos efeitos do racismo na saúde mental da população negra. A informação está no relatório Óbitos por suicídio entre adolescentes e jovens negros, publicado em 2018. 

Há diversos fatores que põe a população negra em vulnerabilidade social. Esses fatores podem levar a diversos problemas de saúde, tanto física quanto mental. Dentre os principais fatores sociodemográficos que influenciam na saúde mental estão: desemprego, migração, isolamento social e conflitos armados. 

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(Imagem: vichinterlang/iStock)

Saúde pública, suicídio e vulnerabilidade social

O suicídio é um problema de saúde pública. Desde 2014, a OMS trabalha para a propagação da importância do cuidado com a saúde mental e prevenção do suicídio. Contudo, em 2019, a organização divulgou que a cada 40 segundos uma pessoa comete suicídio no mundo.

No Brasil, a população negra é a maioria (54%). No entanto, de acordo com dados oficiais, é justamente essa população quem menos tem acesso à educação, saúde, alimentação e condições mínimas de saneamento básico. Essas condições são vistas como Vulnerabilidade na Saúde. No relatório, o Ministério da saúde cita:

Para a psicóloga Mariana Ramos, que realiza atendimentos em uma clínica popular, a população negra e pobre precisa ser educada a entender a importância da psicologia para a saúde física e mental.

“Com a psicoeducação, podemos mostrar que a psicologia pode sim ser acessível e que tem possibilidades de cuidar das suas emoções e questões psíquicas. Pois o psíquico pode influenciar no físico. Às vezes uma doença física não vem do corpo, vem da mente. É o que chamamos de doenças psicossomáticas.”

Preconceito, bullying e infância

(Imagem: Motortion/iStock)

Thamyres Lopes, 24, é jornalista e entende a saúde mental enquanto parte importante para seu autoconhecimento. A jovem, em entrevista à Seleções, contou que enquanto criança, sofreu muito racismo. 

“Eu ganhei bolsa de estudos em uma escola muito cara. E passei por muito racismo. Eu ouvi de uma menina que a raça dela era superior à minha. Eu tinha 13 anos de idade. Isso me marca até hoje. Eu sou muito esquecida, mas lembro o nome da menina, lembro do momento. Lembro até do rosto dela. É uma cena que nunca foi apagada da minha cabeça. Minha cor de pele era sempre ridicularizada pelos outros alunos. Eu também sentia um tratamento diferenciado dos professores. Se eu me interessasse por algum menino eles riam de mim. A infância foi bem difícil nesse sentido para mim.”

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Para a psicóloga Mariana Ramos, os efeitos do racismo e bullying durante a infância e adolescência podem sim, resultar em transtornos psicológicos no futuro. A profissional explica que é necessário entender o preconceito que viveu, para posteriormente pensar na influência que teve na vida.

“Esse transtorno [psicológico] pode ser desenvolvido a partir da infância e pode ser desencadeado mais na frente. A criança pode ter recebido esses ataques e reprimido os sentimentos. A ansiedade generalizada, por exemplo, pode aparecer mais na adolescência. O trabalho na clínica é feito através de uma investigação. Se um adolescente chega na clínica com transtorno de ansiedade, precisamos entender histórico. Precisamos entender como foi essa caminhada, quando o corpo começou a dar sinais.”

Thamyres explica que por mais que tenha trabalhado melhor sua autoestima, ainda sente alguns efeitos do racismo que sofreu durante a infância e adolescência.

(Imagem: shironosov/iStock)

“Na infância tinha uma questão de aceitação. De se achar feia. De acreditar no racista. Acreditar que eu sou feia e ninguém vai me querer. E de fato os relacionamentos para mulheres negras são muito problemáticos e às vezes deficitários. Eu senti esse preterimento muito forte. É algo que rola até hoje. Hoje eu me acho gata, mas às vezes me pego pensando o quanto eu não vou ser desejada. Provavelmente isso é fruto desse período tão forte de racismo e a reprodução dele ao longo da vida, né.”

Quando a dor vira audiência

(Imagem: Scarletsails/iStock)

O racismo pode levar pessoas negras a adoecerem. Seja pelo racismo estrutural que priva negras e negros de acesso à saúde de qualidade. Bem como pelos episódios de racismo diário, que podem resultar nos transtornos psicológicos ou doenças psicossomáticas. 

São vários os casos de racismo que se tornam midiáticos e resultam em protestos. Durante a pandemia do Coronavírus o movimento “Black Lives Matter”, no português “Vidas Negras Importam”, ganhou força ao protestar em busca de justiça pelo assassinato de George Floyd. 

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Dandara*, conta que viveu um misto de sentimento. Protestando apenas online, por conta da pandemia e por se enquadrar em um grupo de risco do Coronavírus, a jovem relata sua indignação.

“Eu acho que é um misto de sentimentos, sabe? Passando por tristeza, indignação, revolta, desespero em saber que não param de nos matar. Anos se passam e a história continua sendo repetida. Então, me sinto muito mal e sem entender por que o nosso povo sofre tanto e não consegue viver em paz. Esse desespero de termos que lutar pelo direito básico que é a sobrevivência. É uma tristeza que às vezes paralisa, sabe?”

(Imagem: DJMcCoy/iStock)

Mariana Ramos fala sobre a espetacularização do sofrimento e como isso influencia negativamente na saúde mental de pessoas negras. 

“Fazer de uma violência uma audiência, não vai nos tirar do lugar que estamos enquanto sociedade racista. Isto pode trazer mais baixa autoestima para aqueles que já não se viam tendo lugar pertencentes a um grupo. O sistema é cruel e quer nos apagar, isso é temeroso. Mas em contrapartida, nos dá a oportunidade de pensar estratégias de agir. Recuar e dar a volta.”

Reestruturação social e psicoterapia decolonial

Mariana Ramos entende que é necessária uma reestruturação para que mais pessoas negras e pobres possam buscar a terapia. Para a profissional, a estrutura racista e desigual em que vivemos não abre o espaço necessário para que essas pessoas se enxerguem como pertencentes. 

“Primeiro, precisamos entender que pessoas pretas vivenciam suas angústias de existência hoje, por todo um contexto histórico e cultural em que não eram vistos como potentes e capazes de ser algo ou alguém para além de quem serve. Contudo isso, estigmas foram criados. E esses estigmas formam uma estrutura de sociedade que reprime. Pensar em saúde mental da população negra, é pensar que precisamos reestruturar. E isso, é um trabalho árduo, mas não impossível.”

Dandara fez terapia pela primeira vez ainda muito jovem. Ela conta que buscou a terapia pois precisava entender seus sentimentos. Na época, ela não entendia que o racismo era responsável por parte do que ela sentia. 

“Fui taxada como feia, cabelo fora do padrão. Sofri também ofensas raciais, com insultos de macaca, mulata, mucama.”, conta a jovem, que hoje consegue relacionar sua ida ao psicólogo com o bullying que sofria no colégio “na época acho que não tinha maturidade para entender o que estava acontecendo”

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Thamyres conta que não faz terapia por falta de dinheiro. Relata que já tentou participar de terapias em grupos e desistiu após ver profissionais reproduzindo racismo. 

“O último que tentei me agradeceu por não ser vitimista, dizendo que isso me ajudava diante do mundo. Disse que muita gente dá vazão ao sofrimento, à vida vitimista e não segue a vida. Então assim, eu sempre tive péssimas experiências nesse sentido.”, relata. 

(Imagem: Josie-Desmarais/iStock)

Na busca por autoconhecimento e formas de cuidar da própria saúde mental, Thamyres decidiu então buscar por outras linhas terapêuticas.

“Me colocar nesse lugar de cuidar mais da saúde mental foi o momento em que senti a necessidade de buscar linhas que conversem mais com a minha trajetória de vida. Uma trajetória coletiva, de um povo. É quando eu começo a pesquisar sobre psicologia decolonial e isso me ajuda muito. Me liberta para eu entender a história do meu povo. Entender as dores que eu sofro na pele mas pessoas que vieram antes de mim também sofriam.”

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*Dandara é um nome fictício para preservar a identidade da entrevistada