A avalanche na subida do Monte Logan

Conheça a história de Natalia Martinez, que, ao tentar chegar sozinha ao pico mais alto do Canadá, o monte Logan, enfrentou uma perigosa avalanche.

Redação | 13 de Novembro de 2018 às 14:00

JOHN ZADA/ALAMY STOCK -

Eram cinco da manhã de 1º de maio de 2017 e Natalia Martinez estava sentada em sua barraca no Território do Yukon, no Canadá, fervendo água da neve que coletara da encosta da montanha mais alta do país. Ela se encontrava 3.901 metros acima do nível do mar, empoleirada numa geleira que pendia a dois terços da altura da encosta leste do Monte Logan. Ainda faltavam três dias para a alpinista argentina chegar ao pico. A noite fora fria, -10°C. Mas agora o sol do Ártico subia lentamente, uma aurora arrastada que logo brilharia pela lona coberta de gelo da barraca.

Quando a água esquentou, Natalia, de 37 anos, desligou o fogão de campanha, preparou uma xícara de chá e começou a misturar aveia, como fizera todas as manhãs nos últimos dez dias.

Ela comeu uma colherada de aveia e refletiu sobre os perigos que a esperava. Mais 600 metros empurrando o corpo e o equipamento pela escarpa gelada e ela chegaria ao platô do cume. De lá, seria uma caminhada de 6 quilômetros até o alto da montanha, contornando as fissuras mortais e as cornijas frágeis de uma geleira que estalava pelo caminho. Só então ela se tornaria a primeira mulher a alcançar sozinha o pico do Logan. Estava tão perto. Natalia estava quase terminando sua refeição quando o gelo e a neve sob a barraca começaram a tremer.

Então a montanha passou a rugir, e, naquele momento, a alpinista achou que tanto ela quanto a barraca seriam lançadas longe da encosta.

Cerca de 2.500 quilômetros, em Whistler, Camilo Rada, companheiro de Natalia, cochilava no apartamento do casal quando o celular tocou. Os dois estavam juntos fazia dez anos, tempo suficiente para ele saber que ela só ligaria àquela hora se fosse uma emergência.

Camilo pulou quando Natalia gritou, no celular via satélite, que havia algo muito errado, mas, então, confusa, ela parou. O Monte Logan se aquietara. Natalia tinha certeza de que a barraca fora arrancada da encosta por uma avalanche. Ficou sentada imóvel, com muito medo de que qualquer movimento súbito causasse sua morte.

Camilo escutou, assustado, Natalia juntar coragem para avaliar os danos. Ela prometeu telefonar novamente, desligou e abriu o zíper do casulo.

Quinze minutos depois, Natalia voltou a ligar para Camilo, ainda perturbada, embora mais calma. Estava em pé diante da barraca e, até onde podia perceber, nada se movera. Mas muitas pontes estreitas de neve sobre as fendas da montanha tinham desmoronado, substituídas por neve solta empurrada sobre as fendas que, agora, escondia seus perigos.

Ainda assim, a montanha parecia tranquila. O único som que Natalia ouvia era o vento de oeste que se afunilava em torno da montanha enquanto uma tempestade ártica passava pelo Pacífico. “Vou guardar tudo e subir mais”, disse ela a Camilo. “Não me sinto segura aqui.”

Ela desligou e se enfiou de novo na barraca. Quando começou a enrolar o saco de dormir, a montanha ribombou mais uma vez.

Desde que, do vizinho Monte Malaspina, Natalia avistara pela primeira vez as imensas paredes de gelo e cristas protuberantes do Monte Logan, ela sonhava com aquela escalada. Até 15 de agosto de 2015, dia em que ela e Camilo chegaram ao pico, o Malaspina era a montanha mais alta já batizada que ainda não fora escalada na América do Norte. Mas até ela era apequenada pelo Logan, que se elevava supremo no horizonte.

O que atraiu Natalia não foi a beleza colossal da montanha nem as dificuldades técnicas. A questão era que nenhuma mulher ou equipe de mulheres havia escalado aquela montanha.

Em 2007, Natalia, que escalava desde os 15 anos, conheceu Camilo num curso de primeiros socorros na selva, realizado na fronteira entre a Argentina e o Chile. Eles se apaixonaram e logo estavam amarrados um ao outro, descendo e subindo paredões nos Andes e no Himalaia.

Em 2011, quando Camilo se matriculou na Universidade da Colúmbia Britânica, em Vancouver, no Canadá, para estudar Geofísica, o casal se mudou para a região vizinha de Whistler, a apenas uma hora e meia de carro da cidade, para que pudessem usar as montanhas e penhascos circundantes como campo de treinamento.

Quatro anos depois, Natalia contou ao companheiro sua intenção de escalar o Monte Logan com uma amiga – e sem ele.

Nos dois anos seguintes, enquanto trabalhava como guia de montanhismo e instrutora de esqui, Natalia estudou a montanha, mergulhando em sua história e geografia. Ela sabia que havia riscos. Em 1987, Catherine Freer e David Cheesmond, alpinistas experientes, morreram quando uma cornija se quebrou. Todo ano, uma média de 25 alpinistas tentam escalar a montanha, e nem todos conseguem. Nos últimos cinco anos, quatro solicitaram resgate.

Natalia formalizou seus planos. A amiga com quem esperava escalar não faria mais a viagem, e ela atravessaria sozinha a extensão de 38,6 quilômetros do Logan, de leste a oeste, exposta a ventos e tempestades que fazem da montanha um dos lugares mais frios do planeta. Para subir 3.819 metros, ela precisaria escolher cada passo com cuidado e se orientar na traiçoeira escarpa conhecida como “Fio da Faca”. De lá, chegaria ao pico e começaria a longa descida pela face oeste da montanha.

Às onze da manhã de 20 de abril de 2017, no aeroporto de Vancouver, ela se despediu de Camilo com um beijo. Depois de voar até Whitehorse, seguiu de carro até a entrada do Parque e Reserva Nacional Kluane. Lá, contratou Tom Bradley, piloto autônomo de um hidroavião monomotor, para levá-la até a montanha. Eles pousaram na geleira no sopé leste do maciço do Logan em 22 de abril.

O céu estava claro, e ela calçou os esquis e começou a arrastar num trenó os 80 kg de equipamento. Natalia levou dois dias para chegar à base da encosta leste. Acampou e ficou sozinha com seus pensamentos. Sabia que a escalada significava mais para ela do que para os outros.

Ninguém prestava muita atenção nela; apenas Camilo e alguns amigos acompanhavam seu progresso pelas coordenadas que ela postava na Internet usando os satélites em órbita.

No terceiro dia, Natalia prendeu os crampons nas botas, pegou as cordas, fixou o piolet na mão e começou a escalar uma encosta inclinada a 60º, cheia de fendas ocultas. Na sexta noite, ela chegou ao Fio da Faca, um trecho quase vertical da crista que obriga os alpinistas a se agarrarem à lateral de uma cornija, confiando que a crosta congelada não vai se quebrar sob seu peso.

Na oitava noite, ela estava acima do Fio da Faca. Pegou a pá, construiu um muro de neve e gelo para proteger a barraca do vento e montou acampamento. O sol baixava no céu do outro lado da montanha quando ela fechou os olhos.

Às cinco da manhã, enquanto tomava café, um terremoto de magnitude 6,2 foi registrado perto do Logan. Foi forte o bastante para sacudir a crosta da montanha, provocando avalanches e impossibilitando a escalada.

Nos momentos seguintes ao primeiro terremoto, Natalia achou mais seguro continuar a subir rumo ao platô do pico. Depois do segundo terremoto, com ventos de 130 km/h, ela considerou mais prudente voltar a um setor mais protegido da encosta. Natalia avançou com cautela até uma nuvem que se espessava. Tentou refazer seus passos pelo Fio da Faca, e lutou contra o terror quando perdeu a trilha na neblina.

Natalia tinha descido uns 300 metros quando foi forçada a montar acampamento. Ela armou a barraca perto de uma fenda, imaginando que, se a tempestade arrancasse o abrigo, conseguiria entrar e se proteger. Depois de se fechar na barraca, Natalia programou o alarme: de duas em duas horas, sairia no vento para limpar a neve da lona e evitar o desmoronamento.

“Minha barraca é meu castelo”, disse a si mesma em voz alta: um incentivo e um lembrete.

Sua diligência a manteve a salvo até o dia seguinte. Periodicamente, ela ouvia o celular via satélite tocar em meio ao ruído da tempestade. Era sempre Camilo ou as autoridades do Parque Kluane aguardando uma trégua para organizar o resgate. A localização de Natalia dificultava a operação. A única maneira de tirá-la da montanha seria de helicóptero, mas as condições climáticas estavam perigosas demais para voar. Natalia não tinha opção senão esperar.

A pressão da tempestade estava curvando os polos da barraca, ameaçando derrubar seu abrigo. Natalia levantou as mãos acima da cabeça e transferiu para si a tensão dos polos. Quando os braços se cansaram, ela mudou de posição e usou a cabeça. Quando não aguentou mais, ficou de joelhos e arqueou as costas contra a lona.

A noite inteira, Natalia foi enfraquecendo. Não conseguia comer nem beber, por medo de que a barraca desmoronasse e ela fosse obrigada a abandoná-la e a se arriscar na fenda próxima.

No apartamento em Whistler, Camilo se preparou para um voo angustiante rumo a Whitehorse. Ele planejara buscar Natalia no parque ao fim da travessia, para que soubesse como sua realização era importante. Em vez disso, ele atendia a ligações dos meios de comunicação locais e internacionais, que só se interessaram pela primeira expedição solo de uma mulher ao Monte Logan quando surgiu a possibilidade de um desastre.

Na tarde de 3 de maio, a tempestade abrandou. Depois de 24 horas segurando seu abrigo, Natalia, exausta, foi finalmente capaz de se deitar. A visibilidade ainda era ruim.

Pelas conversas com Camilo, ela sabia que outra tempestade se aproximava, e se perguntou quanto mais sua barraca e seu corpo aguentariam.

Naquela mesma tarde, Tom Bradley, o piloto que deixara Natalia no sopé da montanha, voltou ao Logan a serviço de clientes que queriam uma visão das montanhas. Foi Tom que percebeu a pausa entre as tempestades que atingiam a encosta leste e avisou os guardas-florestais do parque.

Por volta das sete da noite, quando estava prestes a desligar o telefone para poupar a bateria que se esgotava, Natalia recebeu uma mensagem de Camilo dizendo-lhe que ligasse para a sede do parque. Scott Stewart, coordenador de segurança de visitantes e operações contra incêndios, queria que ela se preparasse em uma hora. Ele acompanhava a situação de Natalia desde que o primeiro terremoto o acordou em Whitehorse, a quase 300 quilômetros. Mas não conseguira organizar o resgate enquanto os ventos açoitavam a encosta da montanha. Agora ele ia para lá com Ian Pitchforth, piloto de helicóptero de Whitehorse, e dois funcionários do parque. Durante uma hora, voaram rumo ao Logan, observando-o crescer até ocupar toda a janela da cabine.

Enquanto isso, na crista leste, Natalia guardou a barraca e tentou cavar uma área plana para a chegada dos socorristas.

Ao olhar em volta, ela teve a primeira visão do ambiente: as rachaduras no gelo e na neve revelavam as avalanches que a cercaram.

Então veio o som das hélices cortando o ar, ecoando pelos picos e pelo vale lá embaixo. O helicóptero baixou, dando voltas em torno de Natalia, agachada na neve. Duas vezes o piloto tentou pousar, mas foi cegado pela nuvem de pó de neve provocada pela hélice. Na terceira tentativa, ele tocou a encosta com a frente dos esquis de pouso da aeronave. Então, Scott soltou o cinto de segurança e desceu para ajudar Natalia. Em menos de um minuto, seu equipamento estava a bordo, e ela também.

Depois do sofrimento que passou, Natalia ficou chocada com o volume de cobertura que recebeu da imprensa canadense e argentina. Ficou sem graça com tanta atenção, mas desapontada ao mesmo tempo, porque foi preciso um perigo extremo para que a percebessem. “Se o terremoto não tivesse acontecido, ninguém nem saberia que eu estava escalando a montanha”, diz ela. Esse fato fortaleceu ainda mais sua decisão.

Dentro do helicóptero de resgate, depois de sair da encosta leste do Monte Logan. Da esquerda para a direita: o piloto Ian Pitchforth, a alpinista Natalia Martinez e os funcionários do parque Sarah Chisholm e Scott Stewart

Desde o resgate, ela e Camilo já alcançaram o pico de uma montanha nunca escalada na Patagônia. Eles a chamaram de Enroque, o roque do xadrez, jogada em que duas peças se movem ao mesmo tempo.

Assistir ao sol se pôr no Oceano Pacífico enquanto realizavam um feito histórico foi mágico, mas não suficiente. O Monte Logan ainda chama Natalia. Ela diz que, um dia, ainda terminará a escalada.

Por Brett Popplewell