Doenças raras: a luta e os desafios de uma mãe com uma filha especial

Uma homenagem ao Dia das Mães de crianças com doenças raras. Com sua entrega e dedicação, elas são mães muito mais do que especiais.

Redação | 10 de Maio de 2019 às 11:00

Arquivo pessoal -

Doenças raras são difíceis de diagnosticar, e quando Valentina nasceu, Liane Mufarrej percebeu que algo não estava bem com a saúde da sua filha. Apesar das suspeitas, o diagnóstico só foi fechado quase dois anos depois.

Valentina tem Síndrome de Prader-Willi (SPW), doença rara, genética que, entre outros sintomas, provoca uma fome insaciável, levando à obesidade.

Passado o choque do primeiro momento, Liane entendeu que não havia tempo para lamentações e sim atitudes. Precisou interromper a carreira profissional e se dedicar integralmente aos cuidados da filha.

Junto com outras mães, criou a Associação Brasileira da Síndrome de Prader-Willi, espaço dedicado ao bem-estar dos indivíduos com a SPW e suas famílias.

Hoje, ciente de que o importante é viver o momento e celebrar as conquistas de sua filha, Liane tem certeza de que ser mãe de uma linda menina com SPW é a sua função mais importante na vida.

Quando você soube que a sua filha tem Síndrome de Prader-Willi (SPW) qual foi a sua reação?

Desde a gestação, foram surgindo sinais importantes, que passaram despercebidos pelo obstetra. Comecei a ter excesso de líquido amniótico (polidramnia) e minha filha mexia pouco dentro da barriga. Mas, como saber que um bebê mexe pouco se era a minha primeira gravidez?

Logo quando Valentina nasceu, ela não tinha forças nem para chorar. Era muito molinha, parecia uma boneca de pano. Foi direto para a UTI neonatal. Precisou de oxigênio, de sonda gástrica para ser alimentada (não sugava) e quase não se mexia na incubadora. Todos esses são sinais da síndrome, que agora sei. Ela dormia o tempo todo e não chorava quando queria mamar.

Era muito molinha, parecia uma boneca de pano

Insisti que chamassem um geneticista e ele, de fato, solicitou um exame que diagnostica a SPW. No entanto, o exame pedido detecta 75% dos casos da síndrome. No caso da Valentina, deu negativo. Saímos da UTI neonatal sem o diagnóstico fechado.

Eu precisava de um tempo para me recompor do trauma de quase perder a minha filha. E ela de um tempo para se recuperar, sem fios, tubos e furadas de agulha constantes. Decidi esperar seu desenvolvimento. Mas percebíamos, ao longo dos meses, que algo não estava bem.

Antes de Valentina completar 2 anos, foi feito o exame que detecta se há ou não a síndrome. Esse deu positivo. Chorei muito com o resultado. Mas, no fundo, eu já sabia. Nesses dois anos, li muito sobre o assunto na Internet, cada vez mais identificando os traços comuns com a Valentina.

Passado o susto e a tristeza, arregacei as mangas e decidi cuidar integralmente da minha filha. Se já a amava incondicionalmente, meu amor cresceu ainda mais e se transformou em atitude e ação concreta para garantir seu bem-estar e felicidade! 

Há tratamento para a Síndrome de Prader-Willi? A rede pública de saúde oferece assistência?

A Síndrome de Prader-Willi é resultado de um erro genético no cromossomo 15, que compromete o hipotálamo e, por consequência, o que esse órgão controla no nosso corpo: a regulação da temperatura, o desenvolvimento sexual, as emoções, os ciclos do sono, a sede e, principalmente, a fome.

A SPW afeta o corpo todo, então o tratamento é multidisciplinar. Logo depois do nascimento, a criança precisa do auxílio de um fonoaudiólogo para aprender a sugar. Precisa também fazer fisioterapia, terapia ocupacional etc. Como as pessoas que têm a síndrome não sentem saciedade e tendem a comer compulsivamente (característica principal da SPW), é necessário o acompanhamento de um nutricionista ao longo de toda a vida. Ortopedista, pneumologista, e, principalmente, endocrinologista são os profissionais mais consultados.

A única terapia “medicamentosa” comprovadamente efetiva é o uso do hormônio do crescimento (GH), cujos resultados incluem, além do aumento da estatura, uma melhora na energia da pessoa, a transformação da gordura corporal em massa muscular, e até uma melhora na cognição e na fala. Existem pouquíssimos ambulatórios que cuidam dos pacientes com a síndrome no país, e o Sistema Único de Saúde (SUS) não fornece o hormônio do crescimento.

Como é conviver com uma filha especial? O que mudou na sua vida?

Conviver com a Valentina é um desafio constante. Além de todo o controle do acesso aos alimentos (há relatos de pais que precisam trancar a geladeira e os armários de cozinha), há também a presença de questões do espectro autista em maior ou menor grau.

Com os anos, a criança passa a revelar um comportamento de teimosia, descontrole emocional, choro fácil, negação a tudo, crises de raiva etc.

Minha vida mudou demais! Quem cuida de uma pessoa com deficiência acaba abdicando da própria identidade. As oportunidades profissionais são interrompidas. O cuidado pessoal é adiado. A carga emocional é altíssima, por conta de diversos fatores: instabilidade da saúde, falta de conhecimento dos médicos, dificuldade de acesso ao GH que é muito caro…

Vivemos no limite, tanto eu, por uma exaustão extrema, quanto ela, por ter de lidar com as dificuldades que a síndrome impõe. No entanto, considero que Valentina me tornou uma pessoa rica, milionária de amor, aprendizado, paciência, olhar compassivo para um mundo com as demais deficiências.

Passei a ter um propósito enorme: ajudar, além da minha filha, a comunidade SPW no país. Uni esforços com outras mães e, em 2016, fundamos a Associação Brasileira da Síndrome de Prader-Willi, a SPW Brasil.

Trabalho de maneira voluntária em um mundo gigante de pessoas e doenças raras, desconhecido por mim anteriormente. E esse mundo é repleto de oportunidades de fazer o bem! De descobertas, apoio mútuo, alegrias e tristezas.

Se não fosse por minha filha, jamais teria feito novas amizades com objetivos comuns na construção de uma sociedade igualitária, justa e inclusiva. E acordar todos os dias com o sorriso mais lindo do mundo me dizendo “eu te amo, mamãe” me faz agradecer a Deus por essa joia extraordinária com que ele me presenteou nesta existência.

Qual a importância da família no processo?

Conto com meus pais para absolutamente tudo. Eles são anjos de compreensão, ternura e disponibilidade em ajudar. A informação sobre a síndrome é fundamental para todos da família, porque quem tem SPW não pode ter acesso livre à comida. Então, nas festas de aniversário, Natal etc., se não houver um entendimento geral, haverá a oferta de doces, petiscos e tudo o que evitamos no dia a dia, desconstruindo um trabalho muito árduo.

Nada de “só um pouquinho não faz mal”. Se não tivermos o apoio da família e de amigos, muitos atritos ocorrem, causando desequilíbrio e desconforto em todos. A segurança alimentar é fundamental para a sobrevivência de quem tem SPW, pois muitos casos de engasgamento já ocorreram em crianças e jovens que ficaram sem a supervisão de um responsável, o que pode causar risco de morte.

Outra coisa que considero importante é não minimizarem a gravidade das queixas e dos relatos dos cuidadores. Isso soa como falta de vontade real de entender a angústia pela qual passamos em ter de negar comida aos nossos filhos. Os alimentos estão por todo lado no mundo. Alimento é alegria, é motivo de celebração, é sinônimo de vida. Imagine como me sinto ao ver minha filha gritando por comida e ter de negar, adotando uma postura rigorosa que me mata por dentro?

E a interação social, você identifica alguma espécie de preconceito?

Valentina faz 5 cinco anos este mês e não tem obesidade, então, por enquanto, não percebo preconceito. Ela tem um tempo de resposta aos estímulos sociais mais lento, então quando o ambiente não favorece a expressão de seus sentimentos, desejos e respostas com calma e paciência, ela acaba se fechando e perdendo a conexão. Isso pode dificultar as brincadeiras infantis e a convivência com os amiguinhos, cujo “tempo” de vida é mais acelerado.

Por conta da rigidez do pensamento e da falta de flexibilidade mental, ela sofre com mudanças na rotina e em tudo o que não faz sentido para o seu modo de pensar. Também reage mal quando é contrariada, e isso é muito delicado. Já ouvi diversas vezes sobre definir limites, mas as pessoas de fora não entendem como esse processo é sutil, podendo desencadear um desequilíbrio tão grave nela que leva muito tempo para passar. Um estrago emocional que poderia ser evitado se muitas pessoas tivessem uma atitude verdadeiramente inclusiva.

Infelizmente, várias crianças com obesidade por causa da SPW sofrem preconceito, sim. O que dilacera o coração da mãe e do pai. Ainda precisamos de muita empatia, solidariedade, compreensão e amor. Essas crianças são tão meigas e só querem ser, de fato, crianças. Mas enfrentam tantas barreiras invisíveis ainda…

Você faz planos, projetos para o futuro da sua filha? O que você espera?

Só de a minha filha estar viva já me basta. Tento não criar expectativas. Ela está se desenvolvendo muito bem, então quando vem uma expectativa ou a construção da imagem mental de um futuro com autonomia, respiro fundo e tento confiar nos desígnios superiores. E tento confiar nela. Apoio, amor, força e presença ela tem e terá sempre.

Tenho total consciência de que muitas crianças com SPW não conseguem se alfabetizar, mas podem desenvolver outros talentos, ligados à música, à arte, à memória (a de longo prazo é excelente!). 

O importante é viver o momento. As conquistas daquele dia específico.

A maioria também não consegue trabalhar, mas já há exemplos de jovens fazendo estágios e cursando universidades! E tenho fé na ciência e na pesquisa científica. A terapia genética está aí! Quem sabe os cientistas não vão nos surpreender muito antes do que esperamos?

O importante é viver o momento. As conquistas daquele dia específico. Se dermos um passo atrás, logo daremos dois à frente. “Firmes como uma rocha”, minha mãe me dizia nos momentos mais difíceis que passei com a Vale…

No próximo domingo comemora-se o Dia das Mães. Qual a mensagem que você deixaria para as mães de filhos com necessidades especiais?

Que somos muitas! E formamos uma comunidade incrível! E que tenho muito orgulho e admiração por cada mãe de pessoa com deficiência que conheço ao longo dessa jornada.

Aprendo com exemplos belíssimos de abnegação e renúncia que me emocionam sempre. E me inspiro nas histórias de sucesso, choro com os fracassos e as perdas, me revolto com as injustiças que são, mesmo indiretamente, minhas também.

Ser mãe de uma criança especial é honrar a confiança que ela deposita em nós. Que possamos nos sentir respeitadas e visíveis. Que nossa luta não seja em vão. Que nossas lágrimas sejam de alegria abundante a cada testemunho de sucesso das “pequenas grandes conquistas” dos nossos filhos. Que nosso presente no Dia das Mães seja a estabilidade da saúde de quem mais amamos. E abraços solidários. Muitos.

Por ELEN RIBERA

Para saber mais sobre outras doenças raras, clique aqui.