A memória da dor de João Carrascoza

A partir da evocação do nome da irmã falecida, João Carrascoza fala de perda, saudade, memória, ausências em seu novo livro "Elegia do irmão".

Redação | 10 de Junho de 2019 às 17:00

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Alguém já escreveu que o sentimento de beleza é algo que a gente tem necessidade de compartilhar – um pôr do sol, uma música, um poema. Ao contrário, um momento de dor ou tristeza geralmente vem acompanhado da urgência por uma clausura, até que as gotas do mal-estar se evaporem uma por uma, mínimas moléculas de oxigênio que não se transferem de dono.

É preciso lembrar, porém, que a literatura pode trazer dor e beleza ao mesmo tempo. A necessidade da partilha se faz ainda no âmbito do desabamento.Uma das “belezas” da vida para mim é um texto capaz de criar este efeito estético e filosófico profundo, mistura de alegrias, aleluias e tormentas, seguido de uma pausa necessária para refletir sobre as palavras. E compartilhar, fazer girar em várias mãos o que li e amei.

Tenho autores e livros de estimação que exercem este efeito, mas devo dizer que muito recentemente um dos que mais têm provocado esta súbita necessidade de partilha é João Carrascoza e tudo o que ele produz.

“Dor e beleza nunca estiveram tão juntas na criação do autor.”

Estou agora às voltas com Elegia do irmão. Li este romance devagar, fruindo cada palavra que não deve escapar – cada sopro é necessário na literatura de Carrascoza. Fala de perda, saudade, memória, ausências. A partir da evocação do nome da irmã, que partiu jovem com uma doença aqui não identificada, ele puxa o feixe das recordações – “a fim de que doa mais, doa mais e de uma só vez, com o curso dos dias, doer menos”.

Dor e beleza nunca estiveram tão juntas na criação do autor. Ele crava pequenos punhais a cada linha ao manejar tão bem a possibilidade trágica da palavra simples. Revive marcas, vestígios, passos, cenas, velhos hábitos reinventados à medida que o texto avança tortuosamente sobre a memória que, cerco de rede, tenta capturar os peixes-acontecimentos que se debatem entre o ar e a asfixia.

O milagre dos peixes, segundo o narrador em primeira pessoa, são “os fatos vividos presos às malhas da tarrafa”. Eis o milagre, porque, na verdade, “só no passado poderão encontrar novamente a vida”.

Triste, belo, complexo, profundo. O mar de João Carrascoza é uma literatura que faz tilintar nossas claridades e, ao mesmo tempo, alquebrar as certezas da sensibilidade – “somos também águas que rebentam pedras”. Faz também acordar a ideia de que “não há blindagem contra as perdas”.

Toda vez que termino um texto do autor eu penso: este é o mais lindo, o mais necessário. Repito a sentença, agora refazendo minha lista de preferência. João Carrascoza se supera a cada linha. Compartilho esta beleza, mas aviso que, para se aproximar da soleira, é preciso saber andar-ler-viver com olhos úmidos e os sonhos despedaçados: “mesmo que eu não queira, os dias vão continuar amanhecendo no passado”.

Por Cláudia Nina

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