Cornualha: onde o prado encontra o mar

Empreendedores, ao lado de fazendeiros e pescadores da Cornualha, renovam aconfiança na generosidade da terra. O que era velho volta a ser novo!

Julia Monsores | 14 de Janeiro de 2020 às 19:00

Reader's Digest -

Em um dia de agosto, os britânicos Tom Adams e April Bloomfield atravessaram um riacho e depois cruzaram um campo atrás de Coombeshead Farm, sua fazenda córnica do século 18. Os dois chefs – ele em Londres, ela em Nova York – transformaram sua propriedade localizada perto de Lewannick, na Inglaterra, numa estalagem e restaurante. Esperavam hóspedes para o jantar daquela noite, e a missão da tarde era buscar ingredientes – azedinhas e amoras – para a refeição.

Passamos por agrião selvagem, canabrás (cujas sementes têm gosto cítrico) e camomila selvagem, que ofereceu uma viagem olfativa instantânea aos trópicos com seu aroma de abacaxi. A azedinha que colhemos iria para as rillettes de cabeça de porco. As amoras estavam destinadas a um casamento arranjado com creme típico da região – um creme de leite engrossado e coagulado. “Tanta abundância”, disse April.

“Era uma expressão da própria Cornualha: inesperado, descomplicado e maravilhoso.”

Contornamos a floresta junto ao riacho. De repente, os dois soltaram uma litania de palavrões. O objeto de seu assombro estava numa árvore: um cogumelo Laetiporus do tamanho de uma cabeça humana. Em poucas horas, ele se transformaria em sua melhor versão num forno a lenha, com a fragrância de alho e tomilho e o brilho da manteiga local. Era uma expressão da própria Cornualha: inesperado, descomplicado e maravilhoso.

Tom e April não são os únicos forasteiros a perceber a promessa fértil da Cornualha. Alguns jovens chefs e empreendedores muito inventivos da Grã-Bretanha estão se instalando aqui e encontrando inspiração nas tradições da região.

Junto com fazendeiros e pescadores córnicos, estão despertando uma confiança profunda e renovada na generosidade dessa terra. O que era velho volta a ser novo – e o sabor é fenomenal.

Coombeshead

Antes de chegar à fazenda Coombeshead, meu marido, Tristan, e eu passamos três dias caminhando 41 quilômetros pela estrada costeira do sudoeste da Cornualha, de Boscastle a Padstow. O caminho atravessa várias encostas à beira-mar, algumas tão íngremes que subimos e descemos por degraus de terra. As gaivotas guinchavam mas mantinham distância, assim como os moradores locais.

Em todo lugar aonde íamos, eles eram receptivos mas reservados, incorporando a ambivalência dos córnicos com os forasteiros. Diz a lenda que, quando São Pirano, um dos santos padroeiros da Cornualha, veio flutuando numa pedra de moinho pelo mar da Irlanda, seus primeiros convertidos não foram pessoas, e sim um texugo, uma raposa e um javali.

É fácil ver por que os forasteiros ainda vêm a esse dedo gordo de terra que, do extremo sudoeste da Grã-Bretanha, aponta o Atlântico. Embora alguns dos lugares mais pobres da Inglaterra fiquem na Cornualha, ela é rica em beleza e patrimônio cultural. Todos os morros de nossa caminhada trouxeram novas paisagens, cada curva um campo diferente – este cercado por um antigo muro de pedra, aquele cheio de flores douradas de colza.

Cornualha: rica em beleza e patrimônio cultural

Igualmente abundantes são as histórias, que datam de séculos. Em Trethevy, passamos alguns minutos calados numa capela medieval dedicada a São Pirano. Em Tintagel, subimos em meio às ruínas do castelo no alto do penhasco que a lenda atribui ao rei Artur. Vários lugares, maravilhamo-nos com torres à beira-mar que desafiam a gravidade, lembranças dos dias de extração de pedra da Cornualha.

Para nos sustentar enquanto caminhávamos, compramos saborosos pastéis em cada cidade. Antigamente, os mineiros levavam esses pastéis grossos, recheados de carne, batata e cebola, para as minas de cobre e estanho – uma refeição prática e completa. Os restos descartados da crosta eram, pelo que dizem, disputados pelos knockers, criaturas parecidas com gnomos que habitariam as minas.

Terminamos a caminhada em Padstow, um destino gastronômico que deve seu estrelato culinário ao famoso chef Rick Stein, que, em 1975, abriu seu primeiro restaurante de frutos do mar na Cornualha. Certa noite, jantamos no Stein’s Fish & Chips, seu estabelecimento informal. A solha-limão numa massa crocante estava divina; o fato de termos de pagar uma libra pelo molho tártaro nem tanto.

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O estabelecimento é uma das dez empresas de Padstow pertencentes a Stein: quatro restaurantes, um café, uma delicatéssen, um bar, uma confeitaria, uma peixaria e uma loja de presentes. O sucesso de Stein, e também o surgimento da Cornualha como um polo da gastronomia, tem seu lado ruim. As reclamações: multidões em Padstow, cuja população passa de 2.500 para 5.500 habitantes na alta temporada. A comercialização também: o império de Stein parece grande demais, com excesso de valor dado à marca.

O lado bom do sucesso: centenas de empregos, além do magnetismo que atrai turistas e talentos culinários. Outro empresário não nativo recente é Tarquin Leadbetter, da Southwestern Distillery, que já tem 6 anos. Criado no vizinho condado de Devon, viveu em Londres antes de se instalar aqui. “Eu queria largar o escritório, surfar pela manhã e fazer gim à tarde”, contou.

A preservação do equilíbrio natural da Cornualha é fundamental para o sucesso

Hoje, Leadbetter vive esse sonho na praia de Constantine Bay, um crescente de areia dourada. Embora seu gim e pastis tenham acumulado prêmios com rapidez, como o título de Melhor Gim de 2017 da Competição Mundial de Destilados, nada mais é rápido na destilaria. Tudo é preparado em pequenos lotes, a maioria em alambiques de cobre feitos à mão. Para seu gim, Leadbetter costumava cultivar violetas no jardim e, para os pastis, colher flores de tojo selvagem, que dão à bebida um toque de coco.

A paciência córnica pode ser mal interpretada por quem é de outras regiões da Grã-Bretanha. Mas a preservação do equilíbrio natural da Cornualha é fundamental para o sucesso, afirma Saul Astrinsky, nativo e dono da Wild Harbour Fish Company. A empresa de 6 anos que ele administra com a mulher, Abi, vende frutos do mar a grandes restaurantes de Londres.

Todos os peixes são capturados por barcos pequenos, com vara, linha, armadilhas e redes de arrasto, os métodos mais sustentáveis, e ele paga bem a seus fornecedores. “Há rapazes que catam litorinas nas rochas para nós, e agora temos mariscos, lagostas e caranguejos”, disse ele. “Precisamos ser cuidadosos para não arruinar tudo.”

Vizinhos cuidando de vizinhos 

Sua contrapartida não marinheira deve ser o mestre açougueiro Philip Warren, cujo açougue e fazenda de mesmo nome cria gado na charneca de Bodmin desde 1880. Embora estereotipada como desolada e melancólica, a charneca é um ecossistema vibrante de granito e turfa, morros e charcos.

O gado que os fornecedores de Warren criam está acostumado ao capim amargo no solo ácido da charneca. “O gado cuida da charneca, que cuida do gado”, disse Warren. “Se não houvesse o gado, em cinco anos a charneca estaria lotada de tojo e samambaias.”

Warren e os vizinhos começaram vida nova comercializando sua carne inigualável e naturalmente orgânica a chefs da Cornualha e de Londres. Os negócios quase triplicaram na última década, e agora ele tem uma longa lista de espera. Warren louva a nova preferência do consumidor pela carne de animais criados no pasto, que tem sabor mais rico. “Vivemos num mundo de agropecuária imperfeita. E estamos contentes que isso esteja mudando.”

Agropecuária rica

Na verdade, o empreendedorismo é apenas a nova versão de uma antiga história: vizinhos que cuidam de vizinhos. “Tudo o que queremos”, disse Warren, “é que o povo continue ganhando a vida desse jeito antigo.”

A agropecuária é viver “da mão para a boca” para a maioria das famílias córnicas, disse-me Mark Hellyar. Sua família cria carneiros e cultiva cevada em 65 hectares perto de Padstow. As fazendas leiteiras que antigamente cobriam a região sumiram quase todas, inclusive a de sua família. O custo era alto demais e a receita, muito baixa.

Hoje, parte da terra da família, no campo costeiro considerado pelo governo “Área de Beleza Natural Extraordinária”, é um acampamento para trailers. Durante oito semanas de verão, os Hellyars obtêm, com as taxas de estacionamento, o quádruplo da receita gerada pela cevada e pelos carneiros.

Hellyar também possui vinhedos na França e fantasia cultivar algumas parreiras. Ele brinca que o produto, como o povo da Cornualha, seria robusto “e, talvez, um pouco salgado”.

Buscando desacelerar

Uma das razões para ele ser capaz de sonhar é que a União Europeia subsidia. Quem tiver pelo menos 4,8 hectares pode se candidatar a um ano de subsídios de, no caso de Hellyar, 15 mil libras por ano. No entanto, a aprovação do Brexit em 2016, em cujo plebiscito a maioria dos eleitores córnicos apoiou a saída da Grã-Bretanha da União Europeia, “põe agora tudo isso em dúvida”, disse ele.

O declínio da agropecuária também trouxe oportunidade para comerciantes empreendedores como Tom e April. A Coombeshead Farm é receptiva, discreta, nada pretensiosa. Os cinco quartos são simples, mas confortáveis. A gerente Lottie Mew, namorada de Tom, faz sabão com lavanda cultivada em casa. A razão disso tudo, observa April, é o repouso. “Hoje tudo é tão transitório, tão veloz”, disse ela. “Vamos desacelerar um instante.”

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Os hóspedes são bem-vindos para ver Tom e sua equipe cozinharem. Certa tarde, ele me mandou à horta colher acelga e alface para a salada da noite; na manhã seguinte, fui ao galinheiro buscar ovos. “Há um encanto nas coisas não refinadas”, disse ele. “Queremos criar um lugar que não só encha a barriga como também baixe a pressão e faça os hóspedes se sentirem em casa.”

A equipe de Coombeshead produz seus próprios vinagres, kombucha e uma geleia de tomate fermentado. Não há frutas cítricas, nem mesmo para o gim-tônica, porque elas não crescem na região; a alternativa deliciosa é uma bebida de cassis e urtiga feita em casa. Também não há azeite. Uma concessão: café.

Uma retomada aos campos..

Tom e April imaginam que Coombeshead pode vir a ser mais do que a estalagem já existente. April cresceu num bairro pobre de Birmingham e se apaixonou por comida e agricultura durante as estadas no campo quando adolescente. 

Não surpreende que April queira que outras pessoas vivam o campo da Cornualha. Certa manhã, levantei-me com o sol, pus as botas de borracha e andei até um campo vizinho, onde um grupo de árvores se destacava em silhueta contra o céu rosa e laranja. O capim estava úmido de orvalho. Ao me aproximar da casa, as galinhas cacarejaram suas saudações.

Quando entrei, Tom estava sozinho na cozinha fazendo granola, e conversamos sobre inspiração. “Aqui estamos na ponta mais distante do país, e há muita gente interessante fazendo coisas interessantes. Muitas delas nem percebem como é bom”, disse ele.

Tom ainda vai a Londres dois dias por semana e passa cinco em Coombeshead – uma agenda cansativa que só é possível graças ao ar fresco e criativo que o revigora na Cornualha. “É esta mistura de gente chegando, aprendendo e fazendo algo novo e gente fazendo coisas que a família faz há gerações. Mas parece que tudo isso é só o começo.”

Por Jeff Chu