Sou o Chocolate: doce, mas com um lado sombrio

A história do chocolate contada por ele mesmo: suas origens, sucessos e os problemas gerados por seu consumo. E a receita de um chocolate quente mágico.

Douglas Ferreira | 7 de Julho de 2020 às 13:00

Lisovskaya/iStock -

Sou e sempre fui um símbolo de prazer, amor, riqueza e alegria. Crianças sortudas me passam em torno da boca e na ponta dos dedos como sinal da suprema satisfação infantil. Sou um dos símbolos da Páscoa e o presente de Dia dos Namorados ideal para comemorar o romance. Mas também sou o recurso salvador dos estressados ou desdenhados em qualquer dia do ano. Mas prepare seu coração para se entristecer só um pouquinho. Minha história de vida nem sempre foi doce.

Ela é quente e épica, ou seja, bastante adequada, dado que sou nativo da região equatorial das Américas e existo há muitos milênios. Venho de uma pequena árvore perene do gênero Theobroma (“alimento dos deuses”, em grego) que produz frutos ovais, não nos galhos, como a maioria das frutíferas, mas no tronco. Meus frutos têm uma casca grossa que cobre a polpa viscosa e acridoce que abriga cerca de 40 sementes cada.

Provavelmente, fui cultivado pela primeira vez 5 mil anos atrás na região que hoje é o Equador para fazer bebidas. (Sim, minha polpa pode ser fermentada e transformada em bebida alcoólica.) Mas logo minhas sementes, chamadas de amêndoas, se tornaram o foco. Os maias, entre outros, as secaram, assaram e quebraram em pedacinhos. Estes foram então moídos, transformados em farinha e misturados com água para fazer uma bebida. Um antigo colonizador europeu que provou a mistura (que incluía pimenta, flores perfumadas e, às vezes, farinha de milho) disse que eu era “uma bebida mais para porcos do que para a humanidade”. Com o tempo, ele começou a gostar da bebida e teve de engolir suas palavras. Logo aristocratas de toda a Europa passaram a tomar uma mistura semelhante feita com água de rosas, gema de ovo ou amêndoas, ou seja, imitando os maias.

Na Páscoa, os deuses dividem conosco as delícias de chocolate.

Além de satisfazer o pendor dos antigos humanos por doces, as amêndoas de cacau eram cheias de fibras, antioxidantes, gordura monoinsaturada, flavonóis (subgrupo dos flavonoides) e outros compostos que os seres humanos estudiosos do século 21 sabem que são importantes para a saúde em geral. Meus flavonóis, especificamente, são bons para baixar a pressão arterial; mas, se esse for seu principal objetivo, é melhor comer chocolate amargo, sem nenhum adoçante – mas quem quer fazer isso? Desconfia-se de que até a teobromina, meu composto mais amargo, seja bom para o cérebro e para o coração. Mas cuidado: ela pode envenenar seu cão, caso ele ataque o estoque de chocolate.

Fiquei à disposição quase exclusiva da classe alta até a revolução industrial, quando alguém finalmente usou uma prensa hidráulica para esmagar as amêndoas de cacau. Então, os fabricantes conseguiram tirar a gordura vegetal de meus pedaços e produzir manteiga de cacau, que tornou mais fácil para os doceiros criar delícias como barras, trufas e bolos de chocolate.

“No entanto, para ser totalmente franco, não me tornei uma guloseima popular em consequência da tecnologia.”

Até hoje, sou produto de muito esforço e dificuldade. Como meus frutos amadurecem em períodos irregulares e ficam presos à árvore por uma haste delicada que seria danificada por uma máquina, a colheita e o processamento têm de ser todos feitos à mão. Foram os plebeus maias e astecas, quase sempre mulheres e crianças, que labutaram para que a realeza, os sacerdotes e os guerreiros importantes pudessem se deliciar comigo. Depois que perceberam que o cacau era uma mina de ouro agrícola, os colonizadores espanhóis e portugueses recorreram ao tráfico transatlântico de escravos a fim de povoar os cacauais em lugares como o Brasil. Vergonhosamente, a história continua, pois boa parte do chocolate que se vende no supermercado é produzida na África Ocidental por mais de 2 milhões de jovens de 12 a 18 anos, que migram sozinhos pelas fronteiras para trabalhar, muitas vezes sem salário nenhum, para os produtores de cacau da Costa do Marfim e de Gana, os dois maiores produtores mundiais.

Ligado no politicamente correto

Se você perdeu o gosto por doces com esse histórico nada saboroso, há maneiras de me consumir com a consciência tranquila. Procure no rótulo do chocolate selos que indiquem padrões éticos de trabalho: Fairtrade, Utz e Rainforest Alliance (embora as entidades admitam que a auditoria da cadeia de suprimentos quanto ao trabalho infantil não seja perfeita). Algumas poucas marcas no Brasil já estão certificadas.

Um bom exemplo: a marca holandesa Tony’s Chocolonely dedica-se explicitamente à meta de erradicar o trabalho escravo no setor cacaueiro. Fundada por um jornalista holandês que já tentou se fazer prender por “apoiar” a escravidão infantil – isto é, por comprar chocolate no supermercado –, ela se tornou líder nos Países Baixos e hoje é vendida em outros países também. Você pode comprar os produtos da Tony’s Chocolonely pela internet e em lojas especializadas. Claro que custa mais do que a média dos chocolates, mas, em termos éticos, não deixará um gosto tão amargo na boca.

Receita: Chocolate quente mexicano mágico

Para preparar a delícia chamada champurrado, ponha ½ xícara de masa harina (farinha de milho mexicana à venda nos supermercados e lojas especializadas) numa panela.

Leve ao fogo médio e acrescente aos poucos 1 litro de água fria, mexendo sempre para obter uma mistura homogênea. Aumente o fogo até ferver e baixe-o em seguida.

Acrescente 85 g de chocolate amargo, ¼ de colher (chá) de canela em pó, uma pitada de pimenta-da-jamaica, outra de pimenta-caiena e mais uma de sal e 3 colheres (sopa) de açúcar granulado, açúcar mascavo ou mel, tudo sem parar de mexer e raspar para que não queime.

Depois de uns cinco minutos, quando o chocolate estiver espesso e cremoso, acrescente mais sal e/ou adoçante a gosto. Afine com água quente se necessário, e sirva quente.

Aprenda a preparar outras delícias com chocolate.

Sobre os autores: Kate Lowenstein é editora de saúde da revista Vice; Daniel Gritzer é diretor culinário do site de cozinha Serious Eats.